Em oito anos, conflito matou mais de 150 mil pessoas e levou país a uma das piores crises humanitárias do mundo. Um combatente iemenita apoiado pela coalizão liderada pela Arábia Saudita dispara sua arma durante confrontos com rebeldes Houthi na linha de frente de Kassara perto de Marib, Iêmen, 20 de junho de 2021
AP Photo/Nariman El-Mofty
Em meio à mais longa pausa nos combates no Iêmen – mais de nove meses – a Arábia Saudita e os rebeldes houthi, apoiados pelo Irã, retomaram negociações indiretas, de acordo com autoridades iemenitas, sauditas e da ONU. Os dois lados esperam fortalecer o cessar-fogo informal e traçar um caminho para negociar o fim da guerra civil, que começou em 2014.
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O silêncio é frágil, sem nenhum cessar-fogo formal desde que uma trégua negociada pela ONU terminou em outubro. Foi abalado pelos ataques de houthis às instalações de petróleo e pela retórica inflamada do governo internacionalmente reconhecido do Iêmen, aliado da Arábia Saudita, que reclama que até agora foi deixado de fora das negociações. A falta de progresso pode levar a um colapso e a uma retomada da luta generalizada.
Mas, após oito anos de uma guerra que matou mais de 150.000 pessoas, fragmentou o Iêmen e levou o país mais pobre do mundo árabe ao colapso e quase à fome em uma das piores crises humanitárias do mundo, todos os lados parecem estar procurando uma solução. A Arábia Saudita reiniciou as trocas indiretas com os houthis em setembro, quando ficou claro que a trégua negociada pela ONU não seria renovada. Omã tem atuado como intermediário.
“É uma oportunidade de acabar com a guerra, se eles negociarem de boa fé e as negociações incluírem outros atores iemenitas”, disse um funcionário da ONU, que falou sob condição de anonimato.
Um diplomata saudita disse que seu país pediu à China e à Rússia que exerçam pressão sobre o Irã e os houthis para evitar uma escalada. Os iranianos, que têm sido regularmente informados sobre as negociações pelos houthis e os omanis, até agora apoiaram a trégua não declarada, disse o diplomata.
A guerra do Iêmen começou quando os houthis saíram do norte do Iêmen e tomaram a capital, Sanaa, em 2014, forçando o governo reconhecido internacionalmente a fugir para o sul e depois para o exílio.
A Arábia Saudita entrou na guerra em 2015, liderando uma coalizão militar com os Emirados Árabes Unidos e outras nações árabes. O grupo, apoiado pelos Estados Unidos, realizou uma campanha de bombardeios destrutivos e apoia as forças governamentais e as milícias no sul do território iemenita. O conflito se tornou uma guerra indireta entre Arábia Saudita e Irã.
Há anos, nenhum dos lados obtém ganhos territoriais: enquanto os houthis mantêm seu controle sobre o norte, Sanaa, e grande parte do oeste densamente povoado, o governo e as milícias controlam o sul e o leste, incluindo as principais áreas centrais, onde estão a maior parte das reservas de petróleo iemenitas.
A guerra também ultrapassou as fronteiras do Iêmen, com os houthis atacando a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos com mísseis balísticos e drones carregados de explosivos. Os rebeldes também atacaram navios no Mar Vermelho. Para os ataques, eles usaram armas dos estoques que apreenderam em Sanaa e armas fornecidas pelo Irã, segundo especialistas independentes e da ONU e nações ocidentais.
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MOHAMMED HUWAIS / AFP
A Arábia Saudita e os houthis mantiveram negociações indiretas no passado, principalmente para trocas de prisioneiros ou cessar-fogo esporádico.
As negociações mais ambiciosas, em 2019, ajudaram a impedir avanços do governo no porto de Hodeida, controlado pelos houthi, no Mar Vermelho. À ocasião, no entanto, as autoridades sauditas acusaram os rebeldes de usar uma trégua não declarada para obter ganhos territoriais e avançar na importante cidade de Marib, controlada pelo governo. Seguiu-se uma batalha de meses por Marib, na qual os houthis sofreram grandes baixas e acabaram sendo expulsos no final de 2021.
A ONU negociou uma trégua mais formal que começou em abril de 2022 e foi estendida duas vezes, terminando em outubro. Os ataques houthi a instalações petrolíferas em áreas controladas pelo governo foram a interrupção mais significativa nos últimos meses. Ainda assim, até agora, nenhum dos lados em guerra retomou os combates diretos.
“Uma escalada seria custosa em todas as frentes. [Mas] todos estão se preparando para a próxima rodada [do conflito] se os esforços da ONU e as negociações entre sauditas e houthis entrarem em colapso”, afirmou um funcionário do governo iemenita.
Abdel-Bari Taher, comentarista iemenita e ex-chefe do Sindicato dos Jornalistas, disse que tentativas anteriores de resolução foram prejudicadas pelos interesses conflitantes das potências envolvidas na guerra (Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Irã).
“Essas conversas não levarão a conclusões concretas se não incluírem todas as partes iemenitas no processo”, explicou Taher.
O negociador-chefe dos houthis, Mohammed Abdul-Salam, disse que as visitas a Sanaa por autoridades de Omã mostram a seriedade dos houthis. A visita mais recente terminou no domingo (15). “Há um dar e receber com outras partes”, afirmou ele, em uma aparente referência à Arábia Saudita.
O que quer cada lado
O reino desenvolveu um roteiro em fases para um acordo, que foi apoiado pelos EUA e pelas Nações Unidas. Nele, a coalizão faz uma série de promessas importantes, incluindo reabrir ainda mais o aeroporto de Sanaa e aliviar o bloqueio em Hodeida.
Os houthis exigem que a coalizão pague os salários de todos os funcionários do estado, incluindo os militares, com as receitas de petróleo e gás, bem como abra todos os aeroportos e portos sob controle do grupo. Uma autoridade houthi envolvida nas deliberações disse que os sauditas prometeram pagar os salários.
O diplomata saudita, no entanto, disse que o pagamento de salários militares está condicionado à aceitação de garantias de segurança pelos houthis, incluindo uma zona tampão com áreas controladas por eles ao longo da fronteira iemenita-saudita. Os houthis também devem suspender o bloqueio a Taiz, a terceira maior cidade do Iêmen.
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Os sauditas também querem que os houthis se comprometam a participar das negociações oficiais com outras partes interessadas do Iêmen, afirmou o diplomata.
O funcionário houthi, contudo, disse que seu lado não aceitou partes da proposta saudita, principalmente as garantias de segurança, e se recusa a retomar as exportações de petróleo de áreas controladas pelo governo sem pagar os salários. Os houthis propuseram uma distribuição das receitas do petróleo de acordo com um orçamento pré-guerra — isso significa que as áreas controladas pelos houthis recebem até 80% das receitas, já que são as mais populosas.
O diplomata saudita disse que ambos os lados estão trabalhando com autoridades de Omã para desenvolver a proposta para ser "mais satisfatória para todos os lados", incluindo outras partes iemenitas.
Em um briefing na segunda-feira (16) ao Conselho de Segurança da ONU, o enviado especial da organização para o Iêmen, Hans Grundberg, expressou seu apreço pelos esforços diplomáticos da Arábia Saudita e de Omã.
“Estamos testemunhando uma possível mudança na trajetória deste conflito de oito anos”, disse Grundberg.
As negociações houthi-sauditas, no entanto, deixaram o governo sem voz, afirmou uma autoridade iemenita. Ela disse que o conselho presidencial do governo teme que a Arábia Saudita “possa fazer concessões inaceitáveis” para chegar a um acordo.
Mas a aliança anti-houthi do Iêmen continua dividida internamente, então há pouco espaço de manobra.
“Não temos outra opção a não ser esperar e ver a conclusão dessas negociações”, disse o funcionário.
Fonte: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/01/18/no-iemen-rebeldes-e-sauditas-negociam-para-manter-tregua-mas-exigencias-de-cada-lado-geram-tensao.ghtml