Para os profissionais da área da saúde, os últimos quatro anos têm sido como um grande plantão, em que, a qualquer momento, pode irromper pela porta qualquer tipo de emergência médica. A pandemia de Covid-19 testou a tomada rápida de decisões para salvar vidas. A epidemia de dengue chegou aos poucos até tomar proporções nunca antes vistas no Rio Grande do Sul, provocando 266 mortes até esta sexta-feira (28). Concomitante ao desafio da dengue, das doenças respiratórias sazonais, as enchentes, entre o final de abril e início de maio, no Estado trouxeram à tona enfermidades que intensificam as preocupações dentro do sistema de saúde. A leptospirose, por exemplo, já havia matado 25 pessoas até hoje.
O impacto das cheias na saúde ainda será sentido por longos meses, acreditam especialistas. É de entendimento de todos que eventos climáticos são cada vez mais extremos e que terão influência sobre a vida das pessoas, principalmente na saúde. Este é o alerta do Observatório do Clima e Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), sobre as enchentes no RS. A nova nota técnica chama a atenção para possíveis surtos de doenças infecciosas, acidentes com animais peçonhentos e intoxicações a partir do recuo das águas. “A ocorrência simultânea de uma maior quantidade e diversidade de problemas de saúde vai exigir um esforço de diagnóstico e triagem oportuna e adequada de casos suspeitos”, informa trecho do documento.
Os apontamentos dos especialistas da Fiocruz também foram percebidos por médicos e gestores que estiveram na linha de frente do atendimento à população atingida pelas cheias no Vale do Sinos e Região Metropolitana. O tema também foi debatido em evento realizado pela Associação Médica do Rio Grande do Sul (Amrigs), no último dia 25, quando abordou em seu Ciclo de Palestras os desafios da saúde pública após os desastres climáticos. Com participação de profissionais de diversas áreas, o evento discorreu sobre as fases da catástrofe e suas consequências, além de apontar caminhos para eventos futuros, como por exemplo, a digitalização de prontuários médicos para garantir a continuidade da assistência médica e a vacinação imediata de grupos mais vulneráveis.
Tão rápido como a água do rio subiu foi a montagem de estruturas para receber desabrigados. Hospitais de Campanha, com a ajuda do Exército, além de núcleos de atendimentos de saúde dentro dos abrigos, são alguns dos exemplos. Em Novo Hamburgo, no maior agrupamento de desabrigados do município, dentro dos pavilhões da Fenac, uma espécie de “UPA” foi montada. Ali atuam médicos servidores do município e também profissionais voluntários, que juntaram forças na fase mais crítica do acolhimento, quando o espaço chegou a ter mais de 3 mil pessoas.
A atenção aos pacientes abrigados era desde a recuperação de receitas médicas para tratamento doenças crônicas preexistentes – como diabetes e hipertensão – a casos mais graves de complicações cardíacas que exigiram remoção para hospital. Mas o impacto da enchente, mudou também a abordagem na assistência à saúde.
Quem mora perto do Rio do Sinos sabe que quando a chuva é intensa, a água invade as ruas. Conviver com enchentes é parte da rotina de moradores de áreas dos bairros Canudos, Lomba Grande e Santo Afonso, para citar apenas alguns dos locais em Novo Hamburgo. Mas a cheia costumava perdurar nas ruas, no máximo uma semana. Com a rapidez, a intensidade e a demora para recuar a água de volta ao leito do rio, ninguém tinha visto.
A magnitude da enchente aplacou a vida de pessoas como Gelson Luís Pinto de Oliveira, 47 anos. Mora na Vila Palmeira há 40 anos. A casa dele nunca havia ficado coberta até o teto. Ele nunca precisou sair de casa por tanto tempo por conta de uma enchente. Desta vez foi diferente. “Relutei no começo, tentei salvar uns animais e outras coisas, mas acabei me entregando”, conta Gelson, que, no início de junho já havia voltado à Vila Palmeira para conferir o que sobrara de sua residência. “Só lodo.”
Os dias dentro do abrigo da Fenac não trouxeram sossego. “Percebi o povo muito desesperado. As pessoas não conseguiam ver nada de bom. Entrei em ‘parafuso’, precisa dizer alguma coisa”, conta Gelson sobre o sentimento que lhe abateu. A saída foi encontrada num giz de cera solto pelo chão. “Peguei um giz que tinha no chão e foi ao natural, foi saindo. Senti um alívio depois que consegui me expressar. E vi que outras pessoas também sentiam o mesmo, algumas pessoas até choraram quando viram”, conta Gelson sobre as inscrições que fez nos muros de papelão, que improvisam a delimitação do que ele chama de condomínio. A palavra “esperança” estampa a entrada. Gelson pode não saber explicar que solução foi aquela, mas reconhece que se sentiu aliviado.
A promoção de saúde mental é um recurso presente nos abrigos e até fora deles agora. Gestores e pesquisadores da área da saúde reconhecem que o aspecto emocional da população afetada pelas enchentes merece atenção daqui para frente. É um dos itens incluídos no reforço ao atendimento em saúde no pós-enchente. No abrigo Gelson recebeu tanto o suporte emocional que precisava para atravessar a tragédia, como também outros atendimentos clínicos, como cuidados diante da suspeita de dengue e de leptospirose, por exemplo.
Professora do curso de Administração e Medicina da Unisinos, Cláudia de Salles Stadtlober analisa o impacto da enchente como um agravante ao cenário que já vinha sendo enfrentado pela saúde no Rio Grande do Sul. Além de citar a epidemia de dengue no Vale do Sinos, principalmente em São Leopoldo e Novo Hamburgo, Cláudia chama a atenção para a saúde mental no pós-enchente.
“A parte difícil que a gente está enfrentando e que ainda vai viver por muito tempo é a questão psicológica e psiquiátrica. Agora que as águas baixaram, as pessoas começam a voltar e veem o que perderam. Não é apenas ver que perdeu as coisas que estavam dentro de casa, é ter perdido a própria história”, comenta a professora da Unisinos, que acompanhou os atendimentos médicos durante a mobilização para atender as famílias abrigadas no ginásio da instituição.
A experiência vivida durante as enchentes de maio também serviu de aprendizado aos alunos – futuros médicos. Cláudia comenta que desde a pandemia a população já apresentava sequelas na saúde mental. Agora, a população das cidades invadidas pela água sofre novo baque. “Começamos a ver quadros bem críticos dos pacientes, que é esse desespero do pós-trauma. Para isso tem que ter grupo, acompanhamento.”
Dados preliminares da pesquisa “Impacto da catástrofe climática de 2024 na saúde mental de moradores do Rio Grande do Sul”, conduzida pelo Serviço de Psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), sob coordenação da professora Simone Hauck, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), mostrou que 91% dos moradores do Estado apresentaram sintomas de ansiedade em função das enchentes de maio. O estudo está sendo realizado com o apoio da Rede Nacional de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação na área da Saúde Mental (ReNaSaM).
Conforme as informações divulgadas pela Ufrgs, as estatísticas foram apuradas com base nas informações repassadas por de cerca de 1,2 mil pessoas que responderam questionários online. A universidade divulgou que a investigação aponta que os principais sintomas reportados foram, além da ansiedade, burnout (59%) e depressão (49%). A pesquisa ainda está em andamento e o questionário ficará disponível por, pelo menos, mais um ano. É possível acessar o formulário da pesquisa acessando https://pt.surveymonkey.com/r/suporteRS.
Com o consultório da Unidade de Saúde da Família (USF) Vila Kroeff, em Novo Hamburgo, destruído pela enchente, o médico generalista Gustavo Henrique da Rocha Lacerda começou a atuar no abrigo da Fenac. Especialista em Saúde da Comunidade, além de ser preceptor no curso de Medicina da Feevale, Lacerda entendeu que seria papel dele também ir ao encontro das pessoas. “Como médico há mais de 20 anos, fico impressionado com a capacidade de reação ante o novo”, reflete Lacerda, ao pontuar a mobilização feita para construir o aparato de saúde dentro da Fenac perante a maior enchente já vista no Estado.
Depois que a água baixou, Lacerda e a médica Amanda Turcatti começaram a visitar as localidades atingidas pela enchente para orientar os moradores sobre o risco de doenças. “Agora que a água baixa, eles começam, desesperadamente, a tentar voltar para seus lares. Começam a tentar limpar, mas sem a devida proteção. Isso pode nos gerar, num futuro próximo, uma crise sanitária”, sinaliza Lacerda.
Amanda lembra que as orientações repassadas aos moradores são baseadas nos protocolos que sociedades médicas, como a Sociedade Brasileira de Infectologia, elaboraram em função das enchentes. “Toda vez que vamos até lá (nas comunidades atingidas pelas cheias), conseguimos fornecer a medicação e avaliamos outras condições”, ressalta Amanda.
O risco de uma crise sanitária a que se refere Lacerda é baseado na observação do cenário desde o recuo das águas e as mudanças no clima até então. A enchente em si cria um ambiente propenso para a disseminação de leptospirose. Mesmo com a água baixando, muitos locais ainda ficam com poças, o que pode favorecer a eclosão de mosquitos Aedes aegypti. Como o médico antevê os riscos, decidiu fazer visitas nas comunidades, como a Vila Palmeira, uma das mais atingidas em Novo Hamburgo. Ali encontra seus pacientes, orienta sobre os riscos e os convida para uma consulta.
Professor do curso de Medicina da Universidade Feevale, o médico de Família e Comunidade Enrique Falceto de Barros pesquisa a relação da saúde e do meio ambiente. Ele, inclusive, já publicou artigos científicos sobre o assunto, um em que aborda a ação de atendimento a doenças e outro sobre a promoção de saúde planetária como incentivo à melhora no estilo de vida do paciente. Barros ressalta que a relação do clima com a saúde é um tema já bastante discutido nas universidades, especialmente, do norte global. E no Brasil, ele cita a Medicina de Saúde e Comunidade como exemplo de prática que se volta a uma visão sistêmica do atendimento à população.
Mencionando a pesquisa de doutorado, Barros explica a relação da saúde com o clima em dois grandes campos: um voltado à educação e outro do manejo imediato. Nesse contexto, a influência do clima na saúde da população não se restringe a enchentes, como o caso recente, mas também a ondas de calor, por exemplo.
Cada circunstância exige um tipo de conduta médica perante o paciente. “Do ponto de vista técnico do manejo de saúde não tem novidade. O que tem novidade é a causa, a dimensão, a magnitude, a transcendência disso. É um fenômeno gigantesco e um dano econômico”, comenta o professor da Feevale sobre os efeitos que as mudanças climáticas podem provocar.
Os efeitos dos eventos climáticos extremos já fazem parte dos temas abordados nas universidades, inclusive na formação dos médicos. Cláudia cita a experiência de uma conferência internacional realizada na Espanha, neste ano, sobre os impactos do clima na saúde. “Temos atividades acadêmicas extras para cada vez mais trazer essa temática para os alunos durante a formação, para terem isso. Quem viveu esses últimos cinco anos já vivenciou tudo o que poderia acontecer”, ressalta.
A professora da Unisinos também menciona que a informação pode ser aliada no enfrentamento de situação de emergência como a que ocorreu em maio. “Esse conhecimento vai melhorar a sua condição de vida, condição de cuidado”, sugere. “Imagino que cada vez mais a gente vai melhorar esse nível de comunicação para que possamos prever e também como atuar nessas situações. É um processo em que a gente está andando, construindo como um todo, universidade e sociedade.”
Créditos do texto/imagem: Portal ABC Mais.