O recente caso de dois trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão em Novo Hamburgo mostram como essas situações podem passar despercebidas pela população. Diferente de casos que costumam ganhar a atenção social, este aconteceu em meio a região mais urbanizada de uma das grandes cidades da região metropolitana, e na área central da cidade, não em um local afastado e de pouca movimentação.
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Por oito anos, um dos homens resgatados trabalhou por até nove horas diárias. Segundo os depoimentos colhidos pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) de Novo Hamburgo, o trabalhador estava em situação de rua quando foi contratado para receber R$ 200 por semana, totalizando cerca de R$ 800 mensais.
Contudo, ao dizer ao contratante que precisava de um lugar para ficar, este ofereceu um imóvel sem portas, luz elétrica, água encanada e banheiro. Mesmo assim o pagamento começou a variar entre R$ 20 e R$ 30 semanais. Cabe lembrar que em 2018, seis anos atrás, o salário mínimo era de R$ 954, e de R$ 880 em 2016, portanto há oito anos.
Natural do Piauí, após seis anos vivendo nestas condições, ele negociou uma saída com o empregador na qual receberia R$ 5 mil e as passagens para voltar ao Piauí, sua terra natal, de onde veio há 20 anos. O homem responsável aceitou o acordo e chegou a comprar as passagens, mas na hora do pagamento ofereceu apenas R$ 600, e se recusou a devolver os documentos de identificação que tinha pego para comprar a passagem. Este foi o ato final da relação que fez com que o trabalhador piauiense recusasse o dinheiro e procurasse a Justiça.
Já nesse momento outro homem, este natural do litoral norte, começava a prestar serviços para o contratante nas mesmas condições. Motorista de aplicativo, ele aceitou a oferta de ficar responsável pela segurança do local, além de varrer e fazer compras para o contratante. O objetivo dele era tentar recuperar o carro e voltar ao trabalho de origem.
Sistema de trabalho forçado que marcou a economia brasileira ao longo de mais de dois séculos, a escravidão deixou de ser entendida apenas como a situação onde uma pessoa se torna propriedade de outra, como explica a procuradora do MPT de Novo Hamburgo, Mônica Fenalti Delgado Pasetto.
“O trabalho escravo contemporâneo possui requisitos específicos e dentre eles estão as condições de alojamento e a retenção de documentos”, detalha ela, responsável pelas investigações.
De acordo com ela, os trabalhadores em situações que remetem à escravidão não estão necessariamente presos fisicamente aos contratantes. “O trabalhador pode andar livremente e ainda assim estar em situação de vulnerabilidade tão grave que acaba aceitando uma condição dessas de trabalho”, resume Mônica.
O caso de Novo Hamburgo chama atenção por algumas situações específicas, e a primeira é o fato de que a casa onde os dois trabalhadores foram alojados estava em um terreno que sequer pertencia ao contratante. Fato que os trabalhadores só vieram a saber quando os verdadeiros donos do lote, localizado no bairro Pátria Nova, tentaram entrar no local.
Vizinho do terreno, o contratante tomou posse do local, colocando cerca elétrica e muros, mesmo sem ser o dono. Os trabalhadores tinham como responsabilidade justamente cuidar da área onde estava a casa, além de prestar outros serviços em outras propriedades do contratante.
Como ambos viviam em situação de rua quando contratados, a situação se desenha para muitas pessoas que veem de fora como uma ajuda, o que não passa de uma máscara para exploração do trabalho, como ressalta a procuradora Mônica. “É a exploração do outro com uma maquiagem da caridade.”
O processo agora segue tramitando na Justiça do Trabalho, e o homem pode ter de responder por dano moral coletivo além dos processos trabalhistas.
Somente neste ano, o Rio Grande do Sul teve 68 trabalhadores resgatados de situações semelhantes.
Créditos do texto/imagem: Portal ABC Mais.