Brasil de Fato
Maristela Santos, hoje com 56 anos de idade, já dedica 24 ao ensino de jovens e crianças na cidade de Campo Bom, no Vale dos Sinos, região Metropolitana de Porto Alegre. Mulher negra, sempre sofreu algum tipo de discriminação ou deboche. Contudo nada como tem vivido desde o início desse ano, com alunos do 8º ano da escola Santos Dumont imitando sons de macaco quando ela se coloca de costas para a turma ao escrever no quadro ou quando passam pela sala de aula onde ela está dando aula.
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A denúncia foi publicizada pelo Coletivo Elza Soares, da cidade vizinha de Novo Hamburgo, que desde que tomou conhecimento está acompanhando o caso e dando suporte à professora. Ao Brasil de Fato RS, Maristela relatou como aconteceram os últimos episódios que fizeram com que ela desse um basta e registrasse um boletim de ocorrência, no dia 13 de maio.
“Nas duas turmas do oitavo ano, sempre que eu entrava em sala de aula eles ficavam imitando macaco. Algumas vezes eu conversei com eles e diziam, ‘ah é uma brincadeirinha do TikTok’. Quando começou a ficar demais, onde de uma turma passou para outra, aquilo foi me indignando”, conta Maristela, que trabalha como professora substituta na escola.
A docente relata que a direção e a coordenação da escola chegaram a conversar com as turmas sobre o ocorrido, fizeram ocorrência, mas no dia seguinte a situação voltou a acontecer. “Eu fiquei indignada e fui fazer o boletim de ocorrência. Não era só a questão do barulho, era a falta de respeito que eles estavam direcionando a mim, com deboche, com brincadeira. Disseram que eu não iria conseguir provar nunca ‘porque tu não tem vídeo, áudio do que estamos fazendo’. Colocando-me lá para baixo. Isso não foi uma ou duas vezes, isso vem desde o início do ano”, expõe.
De acordo com Maristela, a fala da direção está coordenada com a dela, de que ela está no seu direito. Contudo, relata que não foi feito nenhum trabalho de conscientização e respeito junto aos alunos. A professora diz também que a Secretaria de Educação e Cultura (SMEC) do município mostrou solidariedade, mas de concreto não foi feito nada.
“Eu tinha pedido para me afastar da escola devido ao ocorrido, pedi para me passar para o turno da tarde para não ficar direto com a turma. Cheguei a pedir para ir para outra escola. Mas quando me chamaram na SMEC, me colocaram em uma escola que não tem acesso, não tem ônibus para lá, é praticamente do lado oposto da escola onde estou. Não quis ir para outra escola e continuo ali, vamos ver quando a SMEC vai tomar uma posição e me colocar em uma escola mais próxima”, diz.
Em suas mais de duas décadas dedicadas à educação, Maristela afirma que sempre enfrentou situações de racismo, mas nenhuma tão forte como dessa vez. “Na nossa profissão a gente sempre está escutando, vivenciando situações de falta de disciplina, de desrespeito, mas com essa proporção, não.”
A professora acredita que a atitude dos jovens pode estar relacionada com o que eles veem acontecendo no futebol e acham “engraçadinho”. “Estão achando que vão fazer isso dentro da sala de aula e não vai dar nada, porque o professor não viu quem fez, que o professor está de costas e não tem prova para apresentar. Como eu falei para eles, eu trabalho há 24 anos no município, eu tenho a minha voz ativa e a minha voz também conta. Se eu disser que aconteceu é porque aconteceu, não sou criança, eu não vou inventar uma situação que não ocorreu”, afirma Maristela.
Para ela, os alunos devem ser responsabilizados pelos seus atos. “Não é porque eles são menores que não podem ser responsabilizados por uma situação dessas”, desabafa.
O Brasil de Fato RS entrou em contato com a direção da escola, que não se manifestou e sugeriu o contato com a Secretaria de Educação. Em nota a pasta afirmou ser contra racismo e intolerância.
“Diante dos fatos ocorridos, em que uma professora da Rede Municipal relatou ter sofrido injúria racial dentro da sala de aula, a Prefeitura de Campo Bom informa que repudia qualquer ato de discriminação ou racismo e que está prestando todo o apoio à professora. O ato foi denunciado por meio de Boletim de Ocorrência na Delegacia de Polícia local e agora cabe à esfera policial julgar o ocorrido. Campo Bom é uma cidade para todos e é inadmissível que casos assim aconteçam em pleno século XXI. A administração municipal ressalta que acompanhará o caso e prestará todo o apoio necessário à vítima”, afirmou a secretaria.
Coletivo que denunciou segue acompanhando e dando apoio à professora
Ao ter contato com Maristela, a coordenadora racial do Coletivo Elza Soares, Iara Virgínia da Silva, levou o caso ao Coletivo, que então passou a acompanhar e dar suporte jurídico e psicológico. “Toda vez que ela fala, ela se abala. Eu também sou uma mulher negra, a gente consegue dividir a dor, segurar, para ela se fortalecer, para ela realmente falar”, comenta Iara.
Nesta quarta-feira (25), o Coletivo acompanhou a professora na Delegacia para prestar depoimento sobre o ocorrido. No mesmo dia, o Coletivo divulgou a denúncia de injúria racial. No texto a entidade destaca que a Coordenadoria Racial, em parceria com a professora, está realizando a formatação de um novo projeto de intervenção pedagógica, o “Vidas Negras”. O trabalho tem como objetivo abordar, dentro e fora de sala de aula, as consequências, não somente para maiores de 18 anos, mas para qualquer pessoa que proferir ofensas raciais.
Injúria racial é ofender alguém com base em sua raça, cor, etnia, religião, idade ou deficiência. Atualmente, o Código Penal estipula a pena de um a três anos de reclusão para a injúria com elementos referentes a raça, cor, etnia, religião e origem. No dia 18 de maio de 2022, o Senado aprovou pena maior para injúria racial em eventos esportivos e no humor. No texto, a pena subiria para entre dois a cinco anos de reclusão.
Como anda o processo
De acordo com o advogado do Coletivo Elza Soares, Bruno Moraes, o processo está em sua fase inicial. Conforme explica, recém foi instaurado o inquérito policial, onde serão ouvidas as testemunhas. “Não temos um réu atualmente, temos o processo instaurado. Não temos pessoas certas, temos um grupo, que não sabemos nomear quem cometeu o ato e quem foi condescendente”, aponta.
Após o inquérito definir quem são os culpados, o processo seguirá para o processo criminal onde as pessoas poderão responder criminalmente ou por ato infracional dependendo de quem for responsabilizado.
Bruno explica que embora os atos tenham sido cometidos por crianças e adolescentes, elas não respondem criminalmente, uma vez que a legislação brasileira não imputa crimes e ela. Mas são imputadas na modalidade chamada ato infracional, que é quando pessoas menores de 18 anos cometem algo que esteja no Código Penal.
“Crianças ou adolescentes não cumprem pena, mas terão medidas sócio-educativas para que isso seja coibido. Caso elas sejam responsabilizadas, vão ter medidas do tipo pagar cestas básicas ou prestar serviços à população. E dependendo do caso, serem recolhidas para a Fase (Fundação de Atendimento Sócio-Educativo) para passar um período em internação como medida sócio-educativa. Mas não temos como saber porque o processo está muito no início”, reforça o advogado.
Para Bruno, o caso está em um patamar muito preocupante. “Vemos todos os dias casos de injúria racial, mas esse é um caso de injúria racial em grupo. Isso não é algo que vem das crianças, dos adolescentes. Eles trouxeram de algum lugar. Temos um grupo cometendo injúria racial. E mesmo que não cometam, estão sendo condescendentes, quem não tenta represar isso, parar com essa atitude, está sendo condescendente”, afirma.
Ainda segundo expõe, o Coletivo também procurará ações civis para indenizar a professora moralmente pelos danos morais que o ato gerou. “Independe se teve crime ou não, ela está sofrendo um dano moral muito grande, afastando-se da escola, justamente para manter sua integridade psicológica”, finaliza.
O Coletivo Elza Soares atua na violência contra as mulheres, contra grupos LGBTQI+, assim como nas questões que envolvem racismo.