11/11/2022 às 09h24min - Atualizada em 12/11/2022 às 00h12min

Número de pistolas apreendidas pela polícia no RS cresce 557% em apenas um ano

Do Sul21 A análise da série histórica das armas apreendidas pela Polícia Civil e Militar no Rio Grande do Sul pode ser um indicativo do que tem acontecido na segurança pública do estado e também do efeito da flexibilização do acesso às armas promovido pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). O ano de 2021 salta...

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Do Sul21

A análise da série histórica das armas apreendidas pela Polícia Civil e Militar no Rio Grande do Sul pode ser um indicativo do que tem acontecido na segurança pública do estado e também do efeito da flexibilização do acesso às armas promovido pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). O ano de 2021 salta aos olhos. O revólver, historicamente o tipo de arma mais apreendida pela polícia, foi ultrapassado por larga diferença pela pistola, uma arma de maior poder de fogo e capaz de disparar tiros em sequência automática.

Em 2020, as policias Civil e Militar apreenderam 1.547 revólveres e 630 pistolas. No ano seguinte essa relação se inverteu completamente, com a apreensão de 4.144 pistolas e 2.390 revólveres. O percentual de pistolas recuperadas cresceu 557% de um ano para o outro, enquanto o de revólveres aumentou 54%. Os dados foram obtidos pelo Sul21 via Lei de Acesso à Informação (LAI).

As hipóteses para tentar compreender esse fenômeno variam. Na análise da delegada Vanessa Pitrez, diretora do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), o aumento das apreensões de pistolas em relação aos revólveres significa que as pistolas têm sido mesmo mais usadas na prática criminosa. Outro fator destacado por ela é o recrudescimento do trabalho das forças de segurança pública em aprender um maior número de armas.

“A gente tem esse viés dentro das forças de segurança, no sentido de investigar e aprender o maior número de armas possível. Se aprimorou muito o trabalho integrado entre as forças de segurança e a troca de informações. A gente conseguiu observar um trabalho mais efetivo no sentido da prisão por porte de arma e apreensão de armas que seriam usadas em atentados, roubos ou disputas pelo tráfico de drogas”, explica a delegada Vanessa.

O pesquisador Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, acrescenta outras possíveis explicações para o crescimento sem precedentes da apreensão de pistolas no RS. Para ele, o estado gaúcho chama atenção por dois motivos. O primeiro é a mudança de patamar das armas apreendidas, um aumento que não é visto em outro lugar do Brasil. Uma possível causa, ele avalia, se refere ao momento da segurança pública no RS, com uma corrida armamentista causada pelo recrudescimento da guerra entre facções criminosas nos últimos anos.

Langeani, porém, acrescenta outro elemento nesse caldeirão explosivo ao refletir que o fenômeno no estado coincide com o período da flexibilização na compra de armas proporcionada pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). Durante seu mandato, o governo federal alterou a legislação e facilitou muito o acesso a armas mais potentes para a população civil. Embora não na mesma dimensão do RS, pesquisas feitas pelo Instituto Sou da Paz mostram algo semelhante em São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal.

Com a população civil mais armada, pode crescer a quantidade de pessoas com armas roubadas ou furtadas. Armas que, compradas legalmente, acabariam abastecendo o crime. Outro problema, esse sim já constatado, é o crime organizado usar pessoas registradas como caçador, atirador ou colecionador (CAC) para obter armas legalmente.

“Isso traz uma facilidade para o crime organizado modernizar o seu armamento, comprar armas mais potentes e por um preço menor. Me parece que a combinação desses fatores, guerra de facção com uma política federal que facilita o acesso à arma, inclusive pela criminalidade, teve efeitos no Sul”, afirma o pesquisador.

Ele explica que o perfil das armas do crime no Brasil era predominantemente de armas curtas e de fabricação nacional. E embora a substituição do revólver pela pistola seja um fenômeno esperado, no caso do RS, a velocidade com que isso aconteceu impressiona.

“No Rio Grande do Sul isso acontece em tempo recorde. Olhando os dados de vários estados, não vi em nenhum local uma mudança acontecer num período tão curto. Se você somar a quantidade de pistolas aprendidas de 2016 até 2020 (no RS), não dá a quantidade de pistola aprendidas em 2021. Então 2021, sozinho, é mais do que tudo que você aprendeu nos últimos cinco anos”, se espanta o gerente de projetos do Instituto Sou da Paz.

Origem das pistolas

A diretora do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), Vanessa Pitrez, prefere não fazer a relação do aumento da população civil armada com o incremento do arsenal usado por grupos criminosos. Para ela, seria preciso analisar caso a caso de revólveres, pistolas ou fuzis roubados ou furtados de civis e relacioná-los com as armas apreendidas pela polícia sob posse de criminosos.

“A gente não tem como afirmar, diante desse cenário, que a flexibilização da compra de armas legalizada tenha refletido nesse maior número de pistolas utilizadas pelos criminosos e na maior apreensão de armas por parte das forças de segurança, embora tenhamos armas e munições apreendidas e que foram adquiridas por CACs”, afirma a diretora do DHPP.

Ela enfatiza que algumas investigações já identificaram CACs repassando armas para grupos criminosos, mas diz que o maior número de armas apreendidas não vêm desse cenário. A delegada ainda pondera que uma parte das pistolas apreendidas são de origem estrangeira, principalmente da marca argentina Bersa, o que a faz pensar que essas armas têm vindo das fronteiras e não da compra legalizada dentro do País. “A gente nota realmente que pode haver uma deficiência na fiscalização e controle do ingresso dessas armas no território nacional”, diz.

Os dados da Brigada Militar mostram que a diretora do DHPP tem razão, em parte. Pistolas estrangeiras das marcas Bersa, Glock, Smith & Wesson e Colt, para citar algumas, têm sido de fato mais aprendidas nos últimos anos. Porém, os mesmos dados revelam que o maior crescimento de pistolas apreendidas em 2021 é daquelas de origem nacional. Em 2020, por exemplo, foram apreendidas 531 pistolas Taurus no RS e, no ano seguinte, houve um salto para 1.629 pistolas Taurus apreendidas.

No caso da marca Rossi, também de fabricação nacional, o movimento igualmente chama atenção. Enquanto em 2020 foram apreendidas apenas 3 pistolas, em 2021 foram 620. Em 2022, com dados da BM computados até agosto, já são 365 pistolas Rossi apreendidas e 1.046 Taurus.

O gerente de projetos do Instituto Sou da Paz destaca que a pistola argentina Bersa, citada pela delegada, mesmo sendo estrangeira, está à venda no Brasil depois das mudanças promovidas por Bolsonaro, sendo inclusive mais barata do que outras marcas.

“Essa análise de que ‘tem muita arma estrangeira, então eu presumo que é tráfico’, é uma análise que não cabe mais nos dias de hoje, porque houve uma liberação de calibres mais potentes para civis e houve uma liberação de importação que a gente não tinha no Brasil. Isso tem feito com que mais fábricas e mais modelos de armas, que não tinham mercado civil no Brasil, agora apareçam para venda legal”, explica Langeani.

“A simples presença ou ausência de arma estrangeira não nos permite concluir que está vindo de tráfico internacional. A gente precisa qualificar mais essas respostas. Quando a gente afirma que está vindo tudo da fronteira, na maior parte das vezes a gente está virando as costas para uma dinâmica doméstica de desvios locais, cuja resposta da polícia tem que ser totalmente outra”, defende o pesquisador, citando casos recentes de desvios de armas cometidos por CACs, uma dinâmica que não existia e que atualmente é facilitada por uma medida do próprio governo federal.

Ele acredita que dificultar o acesso às armas ajudaria a conter a guerra de facções. Todavia, lamenta que o cenário seja o das polícias do RS tendo que agir para enfrentar a guerra entre facções, ao mesmo tempo em que o governo federal facilita o acesso às armas que podem abastecer o conflito.

Enfrentamento e risco policial

A diretora do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) diz não haver influência no trabalho cotidiano de investigação da Polícia Civil se o crime é praticado mais com pistola ou revólver. O problema, destaca Vanessa, é a possibilidade de aumento da violência e da letalidade dos crimes praticados por pistolas em função do maior número de tiros que a arma permite. Ela também explica que Instituto Geral de Perícias (IGP) consegue identificar se a arma apreendida está relacionada com algum crime em investigação.

“Na execução do nosso trabalho, na elucidação de crimes, não há prejuízo, há prejuízo no maior poder de letalidade no cometimento dos crimes”, afirma.

De toda forma, a delegada reconhece que há preocupação com a possibilidade de armas serem obtidas legalmente para o cometimento de crimes, embora avalie que essa não é a realidade na maior parte das armas apreendidas. “Atualmente, a maior quantidade de armas apreendidas pela Polícia Civil são compradas ilegalmente”, diz.

Outro elemento enfatizado pelo gerente de projetos do Instituto Sou da Paz é a vitimização dos policiais. Langeani traz como exemplo o recente caso do ex-deputado Roberto Jefferson que, sozinho e fortemente armado, atacou quatro agentes da Polícia Federal em condições de superioridade de poder de fogo.

“Aqueles policiais foram emboscados por apenas uma pessoa pelo fato dela ter acesso a arma militar, estar com um fuzil e os policiais, uma arma padrão, uma pistola. A chance de você ter policiais baleados e mortos cresce muito com esse tipo de política. Você aumenta a chance de ter um marido que brigou com a esposa e, quando a polícia chega, essa pessoa transtornada atira também na polícia”, analisa o pesquisador.

A realidade da sociedade brasileira mais armada não deve se alterar a curto prazo, nem mesmo com a mudança na presidência da República. O legado da política armamentista de Bolsonaro, avalia Langeani, não acabará com a eventual revogação dos decretos que flexibilizaram o acesso às armas. Cálculos do Instituto Sou da Paz indicam a entrada de 1,3 milhão de novas armas no mercado legal para civis.

“São armas que ficarão por décadas circulando no mercado legal e ilegal, deixando uma herança maldita para as próximas gerações”, lamenta.

Um lado positivo da situação do RS, segundo o pesquisador, é não ter havido um crescimento no uso de fuzis no mesmo patamar das pistolas. Contudo, não há como dizer que isso ainda não ocorrerá no futuro, afinal, a legislação patrocinada por Bolsonaro permite com que CACs comprem em grande quantidade esse tipo de armamento. Já há casos em outros estados de grupos criminosos usando essa brecha da legislação para aumentar o poder de fogo.

“É algo que a polícia vai precisar ficar atenta nos próximos anos para poder acompanhar e combater”, acredita, e sugere como possibilidade para enfrentar a questão do armamento no País a criação de delegacias especializadas no combate ao tráfico de armas.

Um trabalho que poderia se antecipar ao problema e descobrir quem está ganhando dinheiro com o tráfico de armas, quem está desviando armamento e quem está obtendo arma para facilitar o trabalho do crime.

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