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“Eles maltrataram minha família para me fazer sofrer. Minha esposa foi constantemente abusada sexualmente sob a ameaça de que, se eu não tolerasse, eles não a deixariam me ver”, afirma um ativista político preso e torturado por agentes do regime de Nicolás Maduro, na Venezuela. Esse é mais um de vários outros relatos que demonstram como a ditadura venezuelana vem instrumentalizando de forma perversa os procedimentos de tortura contra opositores políticos no país. “Eles forçaram nossos filhos a testemunhar como eles tiravam a roupa de sua mãe e avó e eles também queriam tirar as roupas dos meus filhos”, completou ele, anonimamente, ao relatório da Seção de Participação e Reparação das Vítimas (VPRS), do Tribunal Penal Internacional (TPI).
Além do relatório divulgado pelo TPI em abril, o Programa Venezuelano de Educação-Ação em Direitos Humanos (Provea), revelou seu novo relatório anual na última quarta-feira (10), no qual aponta que os casos de tortura como o relatado acima continuam sendo uma realidade no regime do ditador Nicolás Maduro. As informações também evidenciam a persistência de abusos sistemáticos contra os direitos humanos, com o uso de métodos cruéis e desumanos para reprimir dissidentes e silenciar a oposição política.
Baseado em dados coletados de janeiro a dezembro de 2022, o relatório do Provea destaca que foram registrados diversos casos de tortura pelo país, identificando um total de 91 vítimas afetadas e duas mortes produzidas por consequência dos procedimentos. No entanto, devido à opacidade oficial de dados e ao medo de represálias de membros da sociedade civil por parte do regime, é provável que esses números sejam subnotificados, indicando que pode haver uma escala ainda maior de violações. Ao todo, entre 2013 e 2022 já foram identificadas cerca de 1.599 vítimas de tortura por parte de agentes do regime venezuelano.
O padrão de violência repressiva do Estado tem como alvo principalmente líderes sindicais, trabalhadores de base, jornalistas, ativistas sociais, camponeses e líderes políticos. No entanto, os trabalhadores têm sido os mais afetados por essas práticas, sofrendo ameaças, assédio e tortura.
Outro sobrevivente corajosamente compartilhou os horrores que vivenciou nas mãos do regime. “Minhas mãos foram algemadas à cadeira com dois pares de algemas. Eles pegaram um bastão elétrico e o conectaram a uma tomada na parede”, disse. “Repetidamente, ele foi aplicado em meu peito, enquanto a água era jogada em minha calça, diretamente na minha genitália. Meus testículos foram eletrocutados, fazendo com que eu perdesse o controle da minha bexiga e urinasse fortemente devido ao choque. As cicatrizes das queimaduras permanecem em meu corpo”, relatou a vítima, também de forma anônima, ao Tribunal Penal Internacional (TPI).
Além dos choques elétricos e estupros, durante o período analisado pelo relatório do Provea, as vítimas relataram também outros métodos brutais de tortura, que incluem ameaças de morte, espancamentos, insultos e até ameaças de crucificação. De acordo com o relatório, esses atos desumanos são realizados por agentes do Estado, principalmente pelo Corpo de Investigação Científica, Penal e Criminalística (CICPC), que foi apontado como responsável em 71,4% dos casos registrados.
“A maioria destas pessoas é vítima de tratos desumanos e degradantes dentro de nossas prisões. As condições de reclusão, não só dos presos políticos, mas de todos os presos deste país geram esse padrão massivo de violações dos Direitos Humanos”, destacou a coordenadora da pesquisa do Provea, Lissette González, durante a apresentação do relatório.
O relatório também ressalta a recorrente impunidade generalizada que prevalece no sistema de justiça venezuelano. Desde 2017, apenas 358 funcionários do Estado foram sentenciados por violações dos direitos humanos, o que acaba sendo um número insignificante se considerarmos que mais de 17.943 vítimas foram registradas nesse período.
Ainda de acordo com as informações divulgadas, foram 51 denúncias de violações ao direito à integridade pessoal feitas diretamente ao Provea, que, completando com as denúncias coletadas em outros meios, como as feitas na mídia independente e outros órgãos locais de defesa de direitos humanos, somam um total de 2.203 vítimas, no período de janeiro a dezembro de 2022. Em comparação com o período anterior (2021), em que foram relatadas um total de 1.306 vítimas, esse número representa um aumento de 68,6%. Juntando os dados, entre 2013 e 2022, já foram registrados, de acordo com o Provea, um total de 40.351 vítimas de violência à integridade pessoal.
“O Provea vem realizando junto a outras organizações de direitos humanos a dura tarefa de documentar esses casos. Além disso, fazemos o envio dessas informações para as instâncias internacionais, porque a justiça nacional não realiza os devidos esforços para produzir materiais de investigação a respeito desse tema de violações dos direitos humanos. Na verdade, praticamente não há investigação”, diz Lissette, em entrevista à Gazeta do Povo.
“Diversas outras organizações internacionais já contribuíram conosco seja enviando casos documentados à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, seja enviando informes para a Missão Independente de Determinação de Fatos para Venezuela da ONU”, afirma a coordenadora da pesquisa.
Diante dos abusos relatados, organizações de defesa dos direitos humanos têm intensificado a pressão sobre o regime de Maduro. Na segunda-feira passada (08), o Tribunal Penal Internacional (TPI) negou uma solicitação do regime venezuelano para ter acesso a declarações feitas por vítimas no relatório que denuncia violações de direitos humanos no país. O relatório foi produzido por meio de investigação iniciada por fiscais do TPI.
Maduro também havia pedido o fim das investigações do órgão, alegando a existência de procedimentos internos genuínos. No entanto, a falta de evidências concretas de ações efetivas por parte do Estado para investigar e processar os responsáveis coloca em dúvida a seriedade desses esforços. De acordo com a decisão do TPI, permitir também o acesso de Maduro às declarações de vítimas do regime colocaria em xeque a segurança das mesmas, uma vez que haveria ali informações confidenciais que poderiam acarretar em mais perseguições por parte da ditadura.
“Como já vimos na recente reunião de Bogotá (realizada pelo governo colombiano para intermediar conversas entre o regime venezuelano e a oposição), o governo manifestou publicamente seus temores sobre o avanço das investigações da corte penal e chegou a pedir, sem nenhum fundamento, que atores políticos decidam em um processo sob o qual não têm nenhuma competência que é o processo sobre a paralização das investigações”, afirma o Coordenador do Provea, Rafael Uzcátegui, na apresentação.
Em 2021, a Venezuela se tornou o primeiro país da América Latina a enfrentar uma investigação aberta no Tribunal Penal Internacional (TPI) por alegados crimes contra a humanidade. Em um regime onde a justiça local é controlada pela ditadura venezuelana, os órgãos internacionais de justiça e de direitos humanos se tornaram um dos poucos canais disponíveis para onde se pode encaminhar as diversas denúncias de violações e torturas que ocorrem dentro do país.
“A única proteção que os venezuelanos têm contra o abuso de poder e o autoritarismo é a atuação dos mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos”, disse Uzcátegui.
Apesar da afirmação do coordenador do Provea, a falta de impunidade na Venezuela ainda é uma triste realidade a ser vivida diariamente. Mesmo sendo signatária do acordo de Roma, caso haja um eventual avanço das investigações e uma condenação por parte do Tribunal Penal Internacional, é improvável que Nicolás Maduro seja submetido a qualquer cumprimento de pena estando dentro do país ou mesmo seja afastado do seu cargo, uma vez que o ditador venezuelano tem em suas mãos o controle sobre a Assembleia Nacional e os militares, o que cria obstáculos para a aplicação efetiva da justiça ou para a confirmação de uma pena internacional.
A persistência das torturas na Venezuela evidencia uma narrativa oficial que busca reprimir qualquer forma de dissidência, restringindo a liberdade de expressão e ameaçando aqueles que ousam questionar o regime. Os casos de tortura não são apenas violações dos direitos humanos, mas também podem ser considerados crimes de lesa humanidade, segundo a Missão Independente de Determinação de Fatos para Venezuela, criada pelo Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).
No último mês de abril, milhares de vítimas do regime venezuelano apresentaram suas opiniões e preocupações durante a solicitação do fiscal do Tribunal Penal Internacional para retomar a investigação sobre a situação no país. A Seção de Participação das Vítimas e Reparações do TPI recebeu aproximadamente 8.900 vítimas, 630 famílias e 2 organizações independentes, que relataram suas experiências através de formulários, vídeos e documentos escritos.
As vítimas incluíram parentes, defensores dos direitos humanos, estudantes, jornalistas e trabalhadores humanitários que foram afetados por uma variedade de crimes como detenções arbitrárias, torturas, violência sexual, desaparecimentos forçados, e perseguições políticas.
Eles ainda expressaram a necessidade urgente de uma investigação imparcial conduzida pelo Tribunal Internacional, argumentando que os procedimentos internos feitos pelo regime de Maduro não são genuínos e que as reformas judiciais adotadas na Venezuela são limitadas. Elas acreditam que o TPI deve responsabilizar os principais perpetradores dos crimes, já que estes estão protegidos da responsabilidade penal no país. A investigação da TPI é vista pelos denunciantes como uma oportunidade única para que as vozes das vítimas sejam ouvidas, a verdade sobre os abusos seja revelada, a impunidade seja combatida e futuros crimes sejam prevenidos.
Além dos crimes específicos mencionados na solicitação do fiscal do TPI, as vítimas narraram numerosos casos de assassinatos e deslocamentos forçados. Os assassinatos incluem aqueles cometidos durante manifestações contra o governo, execuções extrajudiciais e mortes ocorridas durante a detenção, muitas vezes devido a torturas excessivas, condições precárias nas prisões ou negação de tratamento médico adequado.
Os casos de deslocamento forçado envolvem vítimas que tiveram que deixar a Venezuela devido à crise humanitária e perseguição política, enfrentando a perda de emprego e estabilidade econômica, bem como despejo de suas casas, negação de acesso a serviços médicos e benefícios sociais.
Gazeta do Povo
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