JÚLIA BARBON
BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) - Mal havia sido oficialmente reeleito, no último domingo (4), o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, já se disponibilizou a ajudar o líder argentino, Javier Milei: "Oferecemos oficialmente à ministra [da Segurança, Patricia] Bullrich não assessoria, porque não acho que essa seja a palavra, mas colaboração".
O gesto teve reciprocidade do outro lado do continente. "Nos interessa adaptar o modelo de Bukele. A violência na Argentina está intensa", rebateu a chefe da pasta, acrescentando que combinou com seu homólogo salvadorenho de organizar uma viagem ao país.
Ela quer entender como o país centro-americano conseguiu reduzir a criminalidade nos últimos cinco anos, usando basicamente uma política de encarceramento em massa que combateu gangues e rendeu a Bukele 85% dos votos no último pleito, mesmo suprimindo direitos civis básicos.
Mas Milei de fato conseguiria implantar algo parecido ao exemplo salvadorenho em nível nacional?
Estudiosos da segurança na América Latina avaliam que não, principalmente por três motivos. Primeiro, a Argentina é um país quase oito vezes maior em população. Segundo, vive dinâmicas criminais muito diferentes. E, por fim, tem um sistema de controle entre Poderes que em El Salvador já não existe.
"Em El Salvador, quando falamos em gangues, falamos em duas ou três organizações que tinham o controle de quase todo o território e disputavam entre si. No caso da Argentina, são muitos grupos diferentes, que operam a nível local", diz José Miguel Cruz, diretor de pesquisas do centro latino-americano da Universidade Internacional da Flórida.
As chamadas "maras" salvadorenhas são grupos majoritariamente jovens, que vivem mais da extorsão da população do que do narcotráfico –prática que teve forte redução no governo de Bukele, mas não se extinguiu, diz Cruz. Com a baixa produção e consumo de drogas no país, elas também não têm uma atuação internacional relevante como ocorre no México ou Colômbia.
Além disso, a Argentina é um pais federativo, grande, enquanto El Salvador é um minipaís do tamanho de uma cidade argentina, com um governo unitário. Isso faz com que seja muito mais fácil a Bukele centralizar as decisões, implementar políticas nacionais e até negociar com esses grupos", complementa ele.
A realidade de Buenos Aires, por exemplo, é completamente diferente da de Rosário, considerada o maior problema de segurança atualmente no país. A cidade portuária ao norte da capital argentina sofre com forte presença do narcotráfico, e investiga-se inclusive se a facção brasileira PCC (Primeiro Comando da Capital) já está nas prisões locais.
Exceto ali e em algumas outras regiões, no entanto, os homicídios são um problema menor no país, que poderia ser combatido com políticas de redução da circulação de armas de fogo e prevenção a feminicídios, por exemplo, afirma o consultor argentino Tobías Schleider, um dos diretores do Instituto Latino-Americano de Segurança e Democracia.
"Aqui na Argentina é preciso deixar de pensar o crime como uma massa uniforme, os fenômenos são muito variados e de distinta gravidade", diz ele. "A segurança não é só lançar polícia na rua ou prender gente. Pensemos no quão complexa é a economia, ninguém diria 'vamos resolver a economia com uma medida mágica."
Os próprios Bukele e Bullrich reconheceram isso em seus discursos na última semana.
"El Salvador não é o Reino Unido, da mesma forma que El Salvador também não é a Argentina. Como o problema ali é menor talvez o remédio também possa ser menor", disse o presidente do país centro-americano, destacando que teve uma longa conversa com Milei por telefone quando este ganhou as eleições, em novembro passado.
Já Bullrich –que concorreu nas eleições presidenciais com um discurso linha dura e depois perdeu para Milei–, esclareceu que seria uma adaptação e uma cooperação técnica. Ela citou ter interesse nas reformas legislativas que o país fez, por exemplo, sem deixar claro a quais reformas se referia.
Em uma delas, de julho de 2023, a Assembleia controlada por Bukele aprovou a possibilidade de julgar até 900 pessoas ao mesmo tempo, em uma tentativa de desafogar a Justiça. Advogados também foram proibidos de visitar seus clientes nas celas, e o prazo para as audiências de custódia foi estendido para duas semanas.
"Acreditar que as questões de segurança se resolvem mudando leis é uma mentira. E, ainda assim, para que leis assim pudessem existir na Argentina seria preciso uma reforma tão grande que seria impossível, uma mudança muito profunda do Código Penal e até da Constituição", avalia o pesquisador Schleider.
É a mesma opinião de uma consultora de segurança que trabalha no Legislativo argentino e não quis se identificar. Ela lembra da chamada "lei ônibus" de Milei, barrada pela Câmara na última semana. Diante de pressões, o governo teve que retirar um artigo do texto que obrigava o aviso às autoridades de reuniões públicas de grupos de 30 ou mais pessoas.
Essa consultora, porém, pondera que a Argentina poderia tirar algumas lições de El Salvador, como a vontade política de prender líderes de grupos criminosos conhecidos e evitar seu contato com o exterior das prisões. "Isso, em nenhum dos últimos mandatos, inclusive o de Bullrich [que já foi ministra da Segurança de Mauricio Macri de 2015 a 2019] se solucionou", diz.
Mesmo se Milei conseguisse ultrapassar todos esses obstáculos, porém, os estudiosos dizem que o encarceramento em massa não seria suficiente para resolver os problemas da Argentina a longo prazo, e tampouco os de El Salvador. "A criminologia mostra que, cada vez que concentramos grandes números de pessoas nas prisões, mais as organizações criminosas se reestruturam e se reorganizam ali dentro", diz Cruz.
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Créditos: Portal R7.