A crise de moradia na Irlanda não é algo inédito, mas o problema, que vem sendo relatado há tempos, se acentuou com a pandemia de Covid-19 e o conflito envolvendo Rússia e Ucrânia – só nesta semana, cerca de 20 mil ucranianos chegaram ao território irlandês. Com a deterioração do quadro, estudantes e imigrantes que estão tentando a vida por lá se veem em uma situação complicada pelo fato de não encontrarem um lugar para morar. Desde o Brexit, que oficializou a saída do Reino Unido da União Europeia, a Irlanda tornou-se o único país de língua inglesa do bloco, o que faz com que os europeus também se desloquem para lá em busca de emprego. O movimento cria um impasse: apesar das oportunidades no mercado de trabalho, não há moradia suficiente para todos.
Suellem Niccolai está há dois anos na Irlanda e acompanha de perto esse problema. Ela já tem sua casa, mas seu irmão, que chegou recentemente, enfrentou dificuldades para conseguir uma residência permanente, e sua irmã, Cristiane Niccolai, que está há dois meses no país, ainda não conseguiu uma casa fixa. Além da escassez de espaços, Cristiane enfrenta um obstáculo a mais: ela tem um filho de nove anos. De acordo com Suellem, “existe uma dificuldade grande de aceitar criança”. Atualmente, a irmã, o cunhado e o sobrinho estão em um lar temporário, mas têm até o dia 28 de maio para deixar o lugar. “Estou procurando todos os dias, mas está muito difícil. É como encontrar agulha no palheiro”, disse Cristiane à Jovem Pan. “A maior dificuldade é a não resposta dos locatários”, acrescenta. Ela e o marido foram para Irlanda com o propósito de ter um bom salário. Ela admite, porém, que “não esperava que iria encontrar essa dificuldade com casa”. “Era para ser algo fácil e está se tornando um pesadelo”, desabafa.
Desde que chegou à Irlanda, felizmente, Cristiane não precisou dormir na rua. Ela revela, no entanto, que já pensou em armar uma barraca para poder ter um lugar para chamar de seu, mas que reluta em fazer isso por causa do filho. “Preciso dar a ele o maior conforto possível”, afirma. A irmã, Suellem, conta que há uma grande quantidade de imigrantes dormindo no aeroporto. “As pessoas saem, trabalham e voltam para lá”, resume. Os preços dos aluguéis é um outro fator que chama atenção. Antes da pandemia, e até mesmo durante o período de crise sanitária, quando as buscas não eram tão altas, era possível encontrar moradias entre 350 e 450 euros. Hoje, o valor já passa de 750 euros, cerca de R$ 3950 reais, na cotação atual. Tudo isso por um quarto. Ela não pode hospedar a irmã porque o seu contrato de moradia não permite. Apesar de os irlandeses estarem entrando em férias de verão, Cristiane se vê diante de um outro problema caso não consiga encontrar um lugar para morar: a matrícula do filho na escola. “Preciso de um endereço fixo. Não vejo a hora dele estar na escola”, conta. O marido já tem um emprego no país. Ela, por sua vez, faz uns bicos como cleaner (em tradução livre, o profissional responsável pela faxina).
Há muitos fatores que ajudam a explicar por quais motivos há falta de moradia na Irlanda. Entre eles, destacam-se a expressiva chegada dos refugiados de guerra, a falta de vontade dos Iandlordes (nome dados para os proprietários das casas) em alugar os imóveis por um período maior e dar preferência para locações temporárias, e até mesmo o fato de o país não ter estrutura para receber tantas pessoas. É o que explica Cesar de Paiva, da Embaixada do Brasil na Irlanda. “A estrutura da Irlanda não está preparada para responder adequadamente ao aumento da demanda por acomodação decorrente da intensificação do fluxo migratório”, disse em conversa com a reportagem da Jovem Pan. Ele explica que as escolas têm buscado comprar leitos e prédios para acomodar os estudantes, mas “a capacidade de absorver a demanda é muito limitada, dadas as características urbanísticas das cidades irlandesas, o que limita a expansão dos centros urbanos”. Só de brasileiros, a Irlanda viu a quantidade de pessoas quintuplicar em seis anos, de acordo com o censo local. De acordo com a estimativa de Paiva, há entre 70 e 80 mil brasileiros no país. Em 2016, o número estava na casa dos 18 mil.
Essa é uma crise que atinge o país inteiro – e não apenas uma parte. A incerteza sobre ter um lugar para viver também afeta quem está com viagem agendada para o país, como é o caso de Nicolle Martins. A jovem está com o intercâmbio comprado e planejado desde antes da pandemia. Seu destino inicial era a Austrália, mas os planos foram alterados porque o preço para ir ao país que desejava dobrou. O pacote, com acomodação inclusa, foi fechado com uma agência e o desembarque na Europa ocorrerá no dia 23 de junho. Nicolle, porém, enfrenta outro problema. A pouco mais de um mês para deixar o Brasil, houve uma alteração na escola onde ela estudará – de Dublin 1 para Dublin 2; o mapa da cidade é divida em 21 regiões postais. O centro de Educação afirma que a situação está normal, o que desagrada a estudante. “Isso me assunta. A gente passa tanto tempo sonhando com esse momento e por mais que a gente saiba que vá passar por perrengues, é frustrante contratar uma agência que não te diz a verdade”, desabafa.
Nicolle está indo sozinha e pensa em alugar um hostel para ficar por pelo menos um mês até que encontre uma acomodação melhor, mas os preços estão bem altos. “O site de hotel que eu costumo usar, que considero seguro, está cobrando mil euros por 15 dias”, relata. Além desse problema, ela se vê à mercê de um outro cenário que tem sido frequente: muitas hospedagens estão cancelando as reservas em cima da hora, deixando as pessoas de mãos atadas. A adolescente diz que tem feito o que pode para não passar “apertos” – ela chegou a encontrar algumas casas na internet, mas o acordo é condicionado a um contato presencial. “Não está nada fácil realizar esse sonho”, comenta.
Quem também irá para a Irlanda nos próximos meses é Daniele Ribeiro, que chegará no país em setembro. Ela tem sido aconselhada a aumentar os dias no hostel em que ficará inicialmente para que possa encontrar um lugar fixo quando estiver estabelecida. Além da falta de opções, Daniele diz que “há muitos golpes rolando”.
A viagem de Daniele Ribeiro está marcada para setembro. Mas diante dos relatos que tem acompanhado, ela já está procurando acomodações, contudo, relata que não está sendo fácil e as pessoas que já estão lá, recomendam que aumente seus dias no hostel em que ficará nos primeiros dias, e quando estiver no país procure por algo fixo, pois, além de não ter muitas opções “tem muitos golpes rolando”. Ela já pensou em desistir do intercâmbio que planeja há 11 meses, mas decidiu manter os planos porque ouviu da agência de viagens que em cada lugar enfrentará um problema diferente. Ela critica, porém, a falta de suporte do governo irlandês. Suellem confirma a ausência das autoridades locais e faz um alerta: “Se continuarem agindo dessa forma, é como pedir para ter pessoas morando na rua”.
Ir para a Irlanda agora é transformar sonho em catástrofe
Para Suellem, que vivencia essa situação de perto, fazer um intercâmbio na Irlanda, neste momento, é uma “loucura”. “Os estudantes não gostam de ouvir quando a gente fala isso, mas é uma fase muito desafiadora e tensa”, comenta. “Vir agora é pedir para gastar todo o investimento em Airbnb, em hostel, e transformar o sonho do intercâmbio, algo tão gostoso, em uma catástrofe”. Cristiane, que investiu tudo o que tinha para ir para lá, não pensa em voltar nem para Itália, onde estava desde outubro, nem para o Brasil. “Ir para outro país e passar fome é pior. Aqui meu esposo tem um bom emprego e salário. Creio que vou achar casa mesmo sendo quase impossível”, afirma. Mas enquanto isso não acontece, ela e a família se veem em uma triste situação. A Jovem Pan tentou entrar em contato com a Embaixada da Irlanda no Brasil para comentar sobre a crise migratória no país, mas não teve retorno.
Fonte: https://jovempan.com.br/noticias/mundo/crise-de-moradia-na-irlanda-transforma-sonho-de-morar-no-exterior-em-pesadelo.html