24/08/2022 às 09h09min - Atualizada em 26/08/2022 às 00h00min

Ciência sem jaulas

SALA DA NOTÍCIA Valle da Mídia
Mapa elaborado pela Fórum Animal para facilitar a visualização sobre onde ainda são permitidos testes em animais no Brasil
O uso de animais para experimentação é a prática que mais explora animais no mundo, ficando atrás apenas da criação para a produção de alimentos. Hoje em dia, a experimentação animal ocorre em diversos contextos, como no campo científico, em testes cosméticos e no ensino. Testes de segurança, como os de toxicidade, alergia, por exemplo, entre outros, são realizados por diversas indústrias, com a finalidade de produzir produtos para a pele, fragrâncias, agroquímicos e medicamentos.

Por esse motivo, o Fórum Animal busca a substituição do uso de animais na ciência realizando a divulgação e dando visibilidade ao tema, ao mesmo tempo em que trabalha na conscientização e estimula o envolvimento da sociedade de proteção animal com a experimentação animal.

Situação no Brasil

O Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA) do Ministério da Ciência e Tecnologia, emitiu um relatório em 2016 reconhecendo que substituir o uso de animais em experimentos por métodos alternativos garantiria uma eficácia maior e custos menores às empresas. Uma das competências do CONCEA é formular normas que impeçam que os animais sejam submetidos a sofrimento desnecessário. No entanto, a relevância da senciência sobre a forma como os animais são mantidos e tratados é ainda incipiente na prática. Falta postura crítica e reflexão acerca dos abusos humanos cometidos aos animais e isso dificulta o processo de mudança de paradigma e consolidação de uma ciência responsável. 

Em se tratando do uso de animais para teste de fármacos, tratamentos, estudos em diferentes áreas da biologia e outras possíveis contribuições positivas para a saúde coletiva, considera-se que os benefícios da experimentação para a saúde de seres humanos justifica o sofrimento causado, mesmo que o desconforto e sofrimento dos animais durante estes processos já tenham sido reconhecidos. Dessa forma, o uso de animais na ciência é defendido como “um mal necessário” e a resposta às críticas e questionamentos sobre o assunto se resumem grosseiramente ao dito popular de que “os fins justificam os meios”. Porém, fica cada vez mais evidente que as pesquisas feitas com animais atualmente sequer passam por esse crivo do “mal necessário” uma vez que a maior parte delas poderia ser redesenhada de maneira mais adequada, tanto do ponto de vista ético quanto científico, a partir do uso de metodologias mais eficientes e menos injustas para os animais.

Algumas diretrizes do CONCEA

Até o momento, foram reconhecidos pelo CONCEA 25 métodos alternativos ao uso de animais em atividades de pesquisa: 17 metodologias pela Resolução Normativa nº 18 de 2014; 7 metodologias pela Resolução Normativa nº 31 de 2016; e 1 metodologia pela Resolução Normativa nº 45 de 2019. A partir disso a substituição do uso de animais por esses métodos se torna obrigatória, no entanto muitos deles apenas substituem parcialmente o uso de animais.

Quando uma resolução normativa reconhece um método, o seu uso se torna obrigatório (em até 5 anos após a data de publicação). Mas o uso de métodos alternativos que ainda não foram reconhecidos pelo CONCEA (por meio da publicação de RN) é permitido, só não é obrigatório. Infelizmente é comum acontecer de os pesquisadores apenas adotarem os métodos alternativos que se tornam obrigatórios, mesmo que existam possibilidades já internacionalmente reconhecidas pela comunidade científica, muitas vezes por falta de proatividade. 

A partir de maio de 2022, entrou em vigência uma portaria publicada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) que possibilita que empresas dispensem o uso de animais em testes de controle de qualidade de produtos biológicos (por exemplo, vacinas) de uso veterinário. Tal mudança regulatória tem o potencial de evitar a morte e sofrimentos de uma grande quantidade de camundongos, aves e outros animais; além de reduzir os custos e a burocracia. Com a publicação dessa norma, o Brasil se iguala a outros países, como Estados Unidos e Japão, que já haviam adotado essa medida. 

O caso dos cosméticos

O uso de animais para testes cosméticos é uma prática de experimentação cada vez mais difícil de ser justificada. Cosméticos e produtos de perfumaria são desenvolvidos para finalidades consideradas supérfluas, o que nos leva a concluir que a prática é injusta e moralmente desproporcional com cada animal envolvido. Além disso, há caminhos possíveis para garantir segurança para cosméticos que usam ingredientes não testados em animais e formas de consolidar a substituição por métodos livres de crueldade. 

Para a realização de testes cosméticos, os animais passam sistematicamente por uma série de eventos estressantes, como a separação entre mães e filhotes, situação inquietante para ambos – especialmente em mamíferos. Em geral, as mães continuam sendo usadas para gerar mais filhotes, enquanto os últimos são confinados em gaiolas, misturados com outros animais (no caso dos roedores), o que frequentemente gera interações agonísticas (brigas) e, como consequência, lesões, restrição comportamental, falta ou excesso de estímulos e a falta de experiências positivas. Quando finalmente submetidos aos testes, os animais vivenciam situações incômodas e dolorosas para que seja possível observar, por exemplo, possíveis alergias, irritação, corrosão ocular e cutânea, entre outros sinais graves – como ulcerações, edemas e tumores. Todo esse sofrimento, no entanto, é infligido em uma realidade em que já é possível inovar sem a utilização de animais inocentes.

Será que as coisas estão mudando?

Na União Europeia, os testes de cosméticos em animais são proibidos desde 2009 e a comercialização de produtos testados em animais vetada desde 2013. Israel aplicou legislação similar no mesmo ano. A Índia, em 2014, proibiu tanto os testes de cosméticos em animais como a venda e comercialização de produtos cosméticos testados em animais. Mudanças legislativas estão sendo consideradas na Coréia do Sul, e a China está revisando sua regulamentação. No Brasil, graças à pressão e atuação de ONGs pró-libertação animal e ativistas, alguns estados como São Paulo (2014), Mato Grosso do Sul (2014), Paraná (2015), Amazonas (2015), Pará (2016), Rio de Janeiro (2017), Minas Gerais (2018), Santa Catarina (2020) e, mais recentemente, Distrito Federal (2020), Espírito Santo (2021) proibiram a realização de testes de cosméticos em animais.

Uma decisão federal que impeça a prática é uma possibilidade cada vez menos distante, mas ainda requer um grande trabalho de conscientização. Apenas a existência da lei não é suficiente para que a exploração de animais pela indústria de cosméticos acabe. O papel dos cidadãos é muito importante, como na leitura e entendimento das leis anti-testes e dos rótulos de embalagens de produtos cosméticos. É importante entrar em contato com as empresas que fabricam os cosméticos para se certificar de que elas realmente não utilizam componentes que foram testados em outro estado ou país que ainda não proíbe testes com animais. Quando os indicativos “vegano” ou “cruelty free” são apresentados em embalagens, é importante se informar se os selos são confiáveis, ou se são inseridos apenas para apelo publicitário.

Precisamos trilhar outros caminhos

A experimentação animal também é realizada para outras finalidades que devem ser combatidas. Apesar de haver cada vez mais estudos e pesquisas na área de tecnologias e métodos substitutivos em diversos países, no Brasil ainda há pouco desenvolvimento e discussão em relação aos temas da bioética que envolvem simultaneamente questões éticas e científicas.

Centenas de livros, artigos, declarações e regulamentações publicadas ao redor do mundo já estão disponíveis, destacando principalmente a importância de ações educacionais, culturais e políticas públicas baseadas no fato de que animais são seres sencientes e não podem ser tratados como meros instrumentos. Torna-se cada vez mais possível a substituição do uso de animais tanto em ensino e experimentação científica como em testes cosméticos, pois há cada vez mais métodos in vitro, in silico (que usam bancos de peles), peles sintéticas e tecnologias que simulam ou reproduzem artificialmente os processos e características biológicas necessárias para realização dos testes.

FAQ – EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL

Experimentos com animais podem auxiliar na descoberta de curas para doenças humanas?


Muitas vezes a resposta é não! Experimentos com animais não são o ‘mal necessário’ que sempre fomos induzidos a acreditar. Pelo contrário, o uso de animais como “modelos” de doenças humanas enganou a ciência e atrasou o progresso médico por muitas décadas. Isso acontece porque os sintomas de várias doenças são induzidos artificialmente em animais e, em seguida, os pesquisadores tentam curá-los. O problema nesse modelo é que a doença do animal nunca é exatamente igual à versão humana real e, mais importante, a causa não é a mesma. Por esse motivo, é muito provável que a cura para o animal não funcione em seres humanos.

Da mesma forma, nossa compreensão de doenças importantes – e como são transmitidas – foi dificultada pela dependência de experimentos com animais. Tome a poliomielite como exemplo. O desenvolvimento de uma vacina foi atrasado devido à concepção errônea da natureza da doença humana, com base em modelos experimentais enganosos da doença em animais.

A verdade é que, usando animais como modelos, não estamos apenas os submetendo a sofrimento, mas também deixando de colocar esforços no desenvolvimento de métodos mais adequados tanto do ponto de vista ético quanto científico.

Cientistas raramente questionam a experimentação animal, já que foram inseridos em um ambiente profissional que sempre utilizou desta prática. O uso de animais para fins científicos é um hábito arraigado e, por esse motivo, muito conveniente para ser abandonado.

Além disso, o aspecto financeiro é um fator importante para a sua manutenção. Experimentos com animais fazem parte de um grande negócio: a indústria farmacêutica é uma das mais lucrativas do mundo e seus interesses são fortemente protegidos. Em um contexto mercadológico que busca cada vez mais lucros, é ideal que os testes em animais permaneçam, já que os resultados alcançados possibilitam a comercialização mais rápida de produtos e fornecem argumentos de defesa legal para empresas produtoras. Quando um indivíduo apresenta efeitos colaterais negativos devido ao uso de determinado produto, a marca pode alegar inocência se provar que o produto foi testado em animais.

Apresentadas estas informações, nos perguntamos: a vida de animais inocentes pode ser descartada apenas para proteger interesses financeiros? Formas alternativas de garantir a efetividade de produtos já estão disponíveis, sem traços de crueldade animal. Então por que insistir em um modelo que fere as diversas liberdades de um animal? O avanço desta discussão é fundamental e urgente.

Se testes em animais não são efetivos, por que continuam a ser utilizados?

Independentemente do papel que os testes em animais tenham desempenhado no passado, atualmente sabemos que o uso do modelo animal tornou-se extremamente problemático do ponto de vista ético e muitas vezes é ineficaz em prever a segurança e a eficácia de medicamentos e vacinas para humanos. 

Como encontrar curas sem o uso da experimentação animal?

Felizmente, diversos métodos alternativos têm sido desenvolvidos, e hoje em dia existem métodos que dispensam a submissão de animais à procedimentos dolorosos. Cientistas estão desenvolvendo e usando métodos livres de animais que são preditivos para o estudo de doenças humanas e para testar medicamentos. Essas alternativas incluem: testes utilizando células e tecidos humanos (também conhecidos como métodos in vitro), técnicas de modelagem computacional (chamadas de modelos in silico), estudos epidemiológicos e sistemas microfisiológicos (conhecidos como organ-on-a-chip e multi-organ-chip). 

A área de desenvolvimento de métodos alternativos está em constante desenvolvimento. Aumentar o incentivo na pesquisa de métodos alternativos é importante, pois tais métodos reduzem ou eliminam as práticas com o modelo animal, além de melhorarem tempo e custo de produção de medicamentos e serem mais preditivos.

O Fórum Animal é parceiro da Humane Society International (HSI) em sua campanha contra o uso de animais para desenvolvimento de cosméticos, perfumes e produtos de higiene pessoal desde seu início e marca presença nos gabinetes de parlamentares para cobrar e garantir a aprovação de projetos de lei.

Entenda mais:

ANIMAIS NO ENSINO


Em abril deste ano, o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA) publicou no Diário oficial da União a Resolução Normativa CONCEA nº 38/2018, que proíbe o uso de animais em atividades que sejam apenas demonstrativas e observacionais, e que não tenham objetivo de desenvolver competências e habilidades psicomotoras dos estudantes. Ou seja, disciplinas que contam com o uso de animais para demonstrar aos alunos a localização ou funcionamento de órgãos e sistemas, o efeito de determinados fármacos, expressões cognitivas ou comportamentais, por exemplo, precisam ser replanejadas. Até abril de 2019, tais atividades devem ser integralmente substituídas por métodos didáticos como “vídeos, modelos computacionais, ou outros recursos providos de conteúdo e de qualidade suficientes para manter ou aprimorar as condições de aprendizado”.

TESTES LABORATORIAIS PARA COSMÉTICOS

A realização de testes laboratoriais para desenvolvimento de cosméticos já é proibido por lei nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraná, Pará e Amazonas.

Testes de cosméticos são realizados sem anestesia em animais, a fim de observar possíveis alergias, sintomas dolorosos de irritações e corrosão ocular e cutânea ou outros efeitos graves como tumores. Os animais são sistematicamente sacrificados no final do teste, mesmo os que sobrevivem aos testes. Esses sofrimentos são infligidos enquanto já é possível inovar sem usar animais no setor cosmético.

O CONCEA emitiu um relatório em 2016 reconhecendo que “A substituição de testes com animais por métodos alternativos pode não somente atender a pleitos de natureza ética, mas também potencialmente realizar predições com acurácia maior e prazos e custos menores do que os testes em animais”.


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