Desde que Augusto Aras assumiu como procurador-geral da República, em setembro de 2019, 95% das manifestações da PGR estiveram alinhadas a interesses do bolsonarismo, seja ao defender ou chancelar arquivamentos, ou encampando medidas processuais favoráveis ao clã. Nesse período, foram apresentadas 184 acusações contra o ex-presidente Jair Bolsonaro ou os filhos ao Supremo Tribunal Federal (STF), assinadas por partidos, parlamentares, entidades da sociedade civil ou cidadãos em geral. Em apenas 18 não consta nenhuma manifestação da PGR.
O levantamento examinou 186 peças mais relevantes assinadas pelos procuradores. Em 134 ocasiões (72%), a PGR pediu a extinção do processo, e em outras 32 (17%) ela acatou decisões anteriores neste sentido do STF sem recorrer. Há, ainda, dez posicionamentos benéficos para Bolsonaro ou os filhos — como tentativas de retirar ações das mãos do ministro Alexandre de Moraes, desafeto declarado do ex-presidente.
“Pela Constituição, a PGR tem de ser independente. Só ela pode fazer acusações contra autoridades com foro, o que criou um gargalo institucional delicado”, avalia Daniel Sarmento, professor de Direito Constitucional na Universidade estadual do Rio (Uerj) e ex-procurador da República, que enxerga um “alinhamento muito visível ao governo” em Aras.
Pandemia
Temas ligados à covid são centrais em quase um terço das ações contra Bolsonaro. Em repetidas ocasiões, ao pleitear o arquivamento, a PGR ecoou argumentos do ex-presidente sobre a crise. “Autoridades em matéria sanitária divergem sobre várias questões, tais como eficácia do isolamento social e imunidade coletiva”, escreveu Aras em outubro de 2020, quando as orientações da ciência sobre distanciamento já eram conhecidas e amplamente hegemônicas.
Até deixar o cargo, Bolsonaro tornou-se alvo de um único inquérito aberto por iniciativa da PGR, que apura uma suposta interferência na Polícia Federal relatada por Sergio Moro ao deixar o cargo de ministro da Justiça. A vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, vista como um dos nomes mais simpáticos ao ex-presidente no órgão, pediu arquivamento do caso em setembro, a menos de duas semanas do primeiro turno.
O único outro posicionamento da PGR contrário à família Bolsonaro diz respeito a uma petição que sequer virou inquérito, relativa a declarações do ex-presidente da Petrobras Roberto Castello Branco. Embora tenha solicitado, inicialmente, a oitiva de Castello Branco, Lindôra opinou pela extinção da ação após colher ela própria o depoimento.
Mudança de tom
Bolsonaro só foi enquadrado mais duramente pela PGR após sair do Executivo. Em 13 de janeiro, passados cinco dias dos ataques em Brasília, o subprocurador Carlos Frederico Santos, escolhido por Aras para acompanhar o caso, solicitou a inclusão do ex-presidente no rol de investigados como “instigadores e autores intelectuais dos atos antidemocráticos”, pedido que acabou aceito por Moraes.
Santos anexou ao inquérito que tramita no STF uma petição assinada por 80 integrantes do Ministério Público Federal (MPF) que frisa que Bolsonaro “há anos ventila desconfiança quanto à confiabilidade” do sistema eleitoral e “se engajou em disseminar desinformação” sobre o Poder Judiciário, condutas que configurariam “uma forma grave de incitação, dirigida a todos seus apoiadores”.
Seis meses antes, a posição externada pela PGR quanto à postura de Bolsonaro era bem diferente. Ao opinar, em 6 de junho, pelo arquivamento de uma notícia-crime que enumerava ataques infundados do ex-presidente à confiabilidade das urnas, Lindôra defendeu que as declarações eram “mera crítica ao sistema eletrônico” e tinham a “pretensão de seu aperfeiçoamento”, estando “amparadas pelo princípio da liberdade de expressão” — valendo-se, mais uma vez, de uma retórica bolsonarista frequente.
Antecessor de Lindôra no posto, Humberto Jacques de Medeiros também já minimizou o impacto das ações do ex-presidente. Após o Sete de Setembro de 2021, quando Bolsonaro chamou ministros do STF de “canalhas” e ameaçou não cumprir determinações judiciais, o então vice-procurador argumentou que inferir do discurso uma sugestão de “abolição violenta do estado democrático de direito” seria algo “vago e impreciso”.