Os ministérios da Saúde e do Desenvolvimento Social têm adotado diretrizes diferentes — e até antagônicas — para o tratamento de dependentes químicos no país. Enquanto a Saúde tenta retomar o modelo de tratamento sem privação do convívio social, com viés mais humanizado, o Desenvolvimento, responsável pela política antidrogas, defende internação, disciplina e espiritualidade.
A ministra da Saúde, Nísia Trindade, se comprometeu a adotar políticas de saúde mental alinhadas aos princípios da reforma psiquiátrica, em oposição a modelos de isolamento. Com abordagem contrária, as Comunidades Terapêuticas (CTs), sob alçada do Desenvolvimento Social, de Wellington Dias, se tornaram a principal alternativa de tratamento ao uso abusivo de álcool e drogas nos últimos anos.
Entidades privadas sem fins lucrativos, as CTs internam gratuitamente dependentes químicos, em período que pode variar de 3 a 12 meses. Uma das principais características é utilizar o modelo de abstinência no tratamento dos pacientes. A maioria das instituições é ligada a algum movimento religioso.
Na contramão, o SUS acolhe dependentes químicos e seus familiares em Centros de Atenção Psicossociais (CAPS), sem retirada do cotidiano. O modelo, defendido pelo Ministério da Saúde, envolve psicoterapia, oficinas terapêuticas, atividades comunitárias e artísticas, orientação e acompanhamento do uso de medicação, além de atendimento domiciliar e aos familiares.
O ministério de Wellington Dias destina cerca de R$ 214 milhões do orçamento de 2023 para a área de “redução da demanda de drogas”, dinheiro que, na prática, é direcionado às CTs, que têm abordagem contrária ao defendido pela Saúde. Cerca de 600 instituições são mantidas com dinheiro público e deverão ter seus contratos renovados ao longo do ano.
“Não há uma rede adequada de políticas para as drogas no SUS. Sejamos sinceros, o CAPS é um passo incompleto. É preciso dar passos mais largos”, afirmou Wellington Dias em evento sobre políticas contra drogas em 23 de março.
Nísia Trindade discorda que a rede seja inadequada ou um passo incompleto, como acredita Dias. Segundo a ministra, a pasta trabalha para revogar medidas que impeçam o crescimento do CAPS.
Comunidades
O modelo das Comunidades Terapêuticas foi incorporado na rede pública de atenção em 2011, na gestão de Dilma Rousseff. Sua linha de financiamento foi criada dentro do então programa “Crack é possível vencer”. Na época, a ideia era que as comunidades integrassem a Raps, dentro do SUS. A política acabou migrando para a Justiça, e, durante o governo de Jair Bolsonaro, para a Cidadania – hoje Desenvolvimento Social.
“As CTs ficam num limbo no campo legislativo. Não obedecem a uma legislação regulamentada com um tipo de atendimento claro com profissionais de saúde, ao mesmo tempo que o detalhamento do Conselho Nacional de Assistência Social não as considera um serviço de serviço social”, comentou a presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), Ana Paula Guljor.
Para Wellington Dias, no entanto, cerca de 15 mil brasileiros são acolhidos nas comunidades financiadas, as quais têm demonstrado “bons resultados”:
“Queremos seguir a ciência e as experiências com bom resultado. É uma política em construção, e celebrará parcerias com quem puder ajudar. Todas as opiniões serão consideradas e debatidas com os órgãos públicos”, disse.
Recursos congelados
Os Centro de Atenção Psicossocial do SUS não têm aumento de recursos financeiros desde 2011. Já o investimento público das CTs foi intensificado na gestão de Jair Bolsonaro, e o número de unidades beneficiadas chegou a quase dobrar em 2019 – de 280, ampliou-se para 497. A contratação das instituições é feita sem licitação ou concorrência pública. Para conseguir o financiamento, a comunidade deve cumprir exigências de resoluções da Anvisa, entre elas, ter aprovação da vigilância sanitária local, treinamento de pessoal e boa estrutura física.
“As comunidades terapêuticas aparecem como uma solução pouco complexa para um problema social que deve ser lidado com uma multiplicidade de ações. O problema não é a droga, e sim a ausência de moradia, geração de renda, rede de suporte e outros fatores. É efetivo? Para algumas pessoas, dá certo. Mas não deveria ter financiamento público, porque não trata da raiz do problema”, analisou Ana Paula Guljor.