A atuação como educadora social vem de mais de 30 anos, muito antes da primeira graduação. Era na comunidade onde morava, a Vila Vintém, em Padre Miguel, na zona oeste do Rio. A vontade de garantir os direitos de crianças e adolescentes e reforçar a verdadeira função dos conselheiros tutelares levaram Patrícia a concorrer em 2019 pelo CT Zona Sul, porque naquele momento morava no bairro da Glória. Hoje, ela continua na defesa por mais visibilidade para os conselhos, que, segundo ela, ainda não são compreendidos pela sociedade.
Até a posse, são muitas etapas que o futuro conselheiro precisa superar. O primeiro passo é a inscrição, depois há um processo de análise de documentação e de comprovação de idoneidade moral. É preciso ter mais de 21 anos e, no Rio, experiência de, pelo menos, dois anos de atuação com crianças e adolescentes em organizações públicas e sociais credenciadas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA).
Também precisa morar no território relativo ao Conselho Tutelar em que vai concorrer. Após a eleição, o candidato tem que provar que está apto a ocupar o cargo e passar por uma prova de conhecimento de caráter eliminatório.
Agência Brasil - O que representa ter sido a mais votada em duas eleições seguidas? Dá mais responsabilidade?
Patrícia Félix - A votação é uma escolha. Acho que é reforçar o comprometimento. A responsabilidade a gente já traz quando se coloca a candidatura. Se lançar candidato a conselheiro tutelar é uma responsabilidade inicial que a gente tem que ter esse comprometimento. Quando a gente tem uma votação, qualquer que seja, o respeito ao voto e ao eleitor reafirma esse compromisso com a causa e com a luta. A responsabilidade começa na candidatura. Colocar nesse lugar é muito importante e com muita dificuldade. Muitas pessoas não conseguem fazer a inscrição. [Elas} não têm a informação devida.
Agência Brasil - O que, na primeira eleição, fez você querer ser conselheira tutelar?
Patrícia Félix - Eu sou educadora social desde o início dos anos 90 e tenho 36 anos de prática com crianças e adolescentes. Com adolescentes comecei a fazer uns trabalhos, sou ativista em direitos humanos e advogada. Sempre atuei na pauta como educadora social e tenho experiência comprovada. Trabalhei em casas de acolhida institucional e acompanhei adolescentes por mais de três décadas. O que me fez ser conselheira tutelar foi a preocupação. A questão mesmo de reafirmar a potência, a responsabilidade e a importância do conselho. Ele nasce pela sociedade civil, pelos nossos movimentos. Eu faço parte desse movimento, faço parte do debate inicial do ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente], faço parte dessa briga pela revogação do código de menores. Em 1996, foi o primeiro conselho tutelar do Rio de Janeiro e a gente vem participando. Sempre participei de eleições. Eu percebi que, em 2015, tivemos uma eleição muito complicada no Rio de Janeiro, adiada por várias vezes, aconteceu e depois foi anulada. Os conselheiros naquele ano de 2015 foram tomar posse em abril de 2016. Muito atrás de outros conselhos. Isso gerou um problema porque teve uma desmobilização social muito grande. Tivemos conselheiros eleitos com 50 votos. A participação popular foi muito pequena por conta dessa desmobilização. Em 2016, já começaram as eleições unificadas em todo o Brasil e o TRE [Tribunal Regional Eleitoral] começa com empréstimo das urnas e, em 2019, a gente tem uma eleição um pouco diferente daquela de 2015, que foi o pleito em que participei. O que me levou a participar em 2019 foi entender o que de fato estava acontecendo enquanto candidata.
Agência Brasil - Quando você se candidatou em 2019 quais eram as pautas e as suas preocupações?
Patrícia Félix - A minha preocupação era o senso comum encarando o Conselho Tutelar com uma visão errada. Vi uma subalternização e uma desvalorização do próprio órgão. Isso me preocupou muito, porque quando você tem um órgão que representa a sociedade civil no âmbito administrativo de fiscalização, não punitivista, mas com competência de aplicar medidas protetivas que garantam o direito daquela criança e adolescente no nível administrativo e quando eu vejo conselheiro tutelar sendo confundido com oficial de justiça, tendo que ir nas casas para fazer busca e apreensão, nas maternidades para buscar crianças a mando de juiz, nós não somos auxiliares de juízes e tampouco somos subordinados a outro órgão. Nós trabalhamos visando a cadeia da proteção. Temos autonomia como outros órgãos também. Então, quando o Conselho Tutelar passa a visão de desvalorização isso para mim é muito preocupante. E aí o senso comum da sociedade, quando começo a ver crianças que não podem ouvir falar de Conselho Tutelar que tem pavor, famílias mais empobrecidas apavoradas com a presença do Conselho Tutelar, e como oriunda de comunidade, sou uma mulher favelada, isso me preocupa. Como a gente vai desmistificar. Hoje, a gente tenta suavizar perante a sociedade essa visão e que as pessoas encarem o Conselho Tutelar com a responsabilidade e seriedade que o órgão tem.
Agência Brasil - Esse ano houve uma mobilização maior e cresceu a participação popular. Você acha que a sociedade já começou a ter consciência da função primordial do Conselho Tutelar? Hoje a sociedade já entende melhor a função do Conselho Tutelar?
Patrícia Félix - A participação social de todos e todas é o que a gente vai mobilizar. Hoje, ainda quando você vai nas ruas o que se percebe é total desinformação. Muita gente não sabe como votar, mesmo com a gente levando as informações e saindo reportagens, muitas pessoas não vão saber nas próximas eleições como vão votar no Conselho Tutelar. A consciência aumentou, mas é muito difícil se não tem um trabalho contínuo de esclarecimento à população sobre qual é realmente a competência desse órgão. Por um lado, tem pessoas que não querem que o Conselho Tutelar atue, nem exista. Por outro lado, se também não tenho a informação correta desse órgão, como vou exercer essa democracia direta no voto facultativo? Acho que os conselhos de direito foram uma conquista da democracia, mas ainda tem que ter a participação. Tem uma orientação que está crescendo, mas a gente ainda tem que desmistificar muita coisa sobre o conselho para que a gente possa realmente efetivar a garantia da criança e adolescente sem criminalizar ninguém. A gente vê uma sociedade que tem uma tendência e agora está muito aflorada, que discrimina. Tem uma desigualdade, a gente tem problema de classe no Brasil, então, enquanto a gente não tiver essa questão pedagógica de falar com as pessoas preocupadas com crianças e adolescentes, a gente vai ter um Conselho Tutelar enfraquecido.
Agência Brasil - A ausência de uma representação do órgão em alguns municípios do país também é uma preocupação. Por que não tem é uma questão administrativa ou de mobilização popular?
Patrícia Félix - A ausência de conselhos tutelares é um fato. No Rio de Janeiro somos 19, mas o recomendado pelo Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda) é um conselho para cada 100 mil habitantes, então deveríamos ter o número, no mínimo, de 64 conselhos. Os Conselhos Tutelares são criados pelos municípios. Então, a gente tem um déficit para essa recomendação do órgão maior no Rio de Janeiro. Tem município que [tem] menos, outros mais, mas no Rio de Janeiro, pela complexidade da cidade, é complicado. Tem município com menos de 100 mil habitantes que tem conselho tutelar, [mas] são poucos no Brasil, mas a gente tem e em outras grandes cidades há o déficit. Isso acaba colapsando com um número de denúncias e de averiguações muito alto. Por isso, o Conselho Tutelar tem que estar atento à sociedade e ao que a gente pode colaborar, mas é muita coisa e ainda tem muitos desafios pela frente.
Agência Brasil - Nesse novo mandato quais são os temas que você quer botar para frente e provocar discussão?
Patrícia Félix - O conselheiro tutelar não é parlamentar. O nosso órgão é taxativo. O tema principal é aplicar e defender o ECA. O conselheiro tutelar não vai inventar a roda. A proposta que a gente pode dar é dentro de uma ausência ou negligência, a gente pode dialogar e aplicar medidas protetivas de requisição daquele serviço, mas tudo pautado no ECA. O bê-á-bá nosso é o Estatuto da Criança e do Adolescente e as legislações que auxiliam. O tema principal é fortalecer o ECA e implantar de fato o Sipia que é o Sistema Unificado de Informações, que os conselheiros e conselheiras não têm incentivo para usar. Alguns não sabem a importância ou não são motivados. O município tem que dar esse suporte. Através do Sipia, a gente vai conseguir informações para políticas públicas. Se eu estou aqui e tem uma criança que sofre negligência e vem de outro estado e, se o município usa o Sipia, quando eu abro o cadastro da criança tenho tudo dela. Facilita e continua o acompanhamento [feito] por outro colega. É uma ferramenta que a gente tem que implantar.
Agência Brasil - Passa pelo desconhecimento como você falou?
Patrícia Félix - Nós, do Conselho Tutelar Zona Sul, utilizamos 100%. Todo colegiado, toda a equipe técnica e toda a equipe administrativa, mas no município do Rio tem o Zona Sul e o de Vila Isabel usa parcialmente.
Agência Brasil - E os outros não?
Patrícia Félix - Não, e todo mundo teve treinamento. Aí não tem número, não tem estatística, não tem planejamento, cada vez que faço um manuscrito e boto no arquivo não vou ter o acesso e contar quantos atendimentos. O Sipia dá essa estatística inclusive classificando gênero, etnia, tipo de negligência, qual a medida mais aplicada, qual o maior negligenciador. Dá uma transparência que talvez não seja interessante, mas é necessária.
Agência Brasil - Em 2019 foram 4.639 votos e dessa vez 5.997, ou seja, mais de 1.300 votos a mais. Isso comprova o trabalho que você fez?
Patrícia Félix - Comprova o trabalho que eu fiz e também o comprometimento de ir às ruas porque o meu comprometimento é fazer um conselho tutelar aberto, não nos procedimentos que são sigilosos, mas a gente tem que fazer um conselho aberto até para poder saber o que o conselho não faz. Porque atribui uma responsabilidade que não é dele. Por exemplo, o senso comum fala que o Conselho Tutelar tira filho da mãe. Ninguém tira filho da mãe. A perda do poder familiar passa por um processo legal, tem ação própria, tem juizado próprio para isso. O Conselho Tutelar não é jurisdicional. Então, o Conselho Tutelar que dá termo de guarda está equivocado e merece ser investigado. Quem oferece emprego para pai e para mãe e promete o que não está dentro do ECA merece ser investigado. Quem não utiliza o ECA como fonte e usa preceitos religiosos merece ser investigado. Então, essa conversa e esse diálogo que eu faço com a população, não só para a eleição, independente de etnia e poder econômico, o direito da criança e do adolescente tem que ser protegido. Essa é a minha máxima.