A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa recebeu em audiência pública nesta segunda-feira (9) dossiê elaborado pelo Levante Feminista do RS sobre os casos de feminicídio no Estado, com denúncia de paralisação da rede de proteção às mulheres e desmonte das políticas públicas para prevenção da violência doméstica e sexual. O encontro mobilizou diversos coletivos de mulheres e através de conexão com a Câmara Federal, oportunizou depoimentos de ativistas feministas de outros Estados que também atuam no combate à violência contra a mulher e contra o feminicídio.
O Levante Feminista encontrou diversos casos de mulheres trans vítimas de feminicídio que não foram notificados pelas autoridades de segurança, assim como as omissões de casos de etnias, como foi o caso de jovem Kaingang assassinada no Norte do RS.
Por proposição da deputada Sofia Cavedon (PT), que é vice-presidente da CCDH e também procuradora especial da Mulher da Assembleia Legislativa, o relatório do Levante Feminista foi apresentado durante a audiência pública, realizada na Sala da Convergência Adão Pretto. Uma das reclamações constantes das ativistas é quanto ao abandono e inoperância do Centro Estadual de Referência da Mulher Vânia Araújo, local estratégico para o recebimento de mulheres em situação de violência em Porto Alegre.
A deputada confirmou com a secretária da Igualdade, Cidadania, Direitos Humanos e Assistência Social do RS, Márcia Pires de La Torre, a desarticulação do Centro Estadual de Referência da rede de proteção social e jurídica às mulheres vítimas de violência doméstica e sexual. Além disso, foi relatado que as emendas parlamentares da deputada Luciana Genro (PSOL), destinadas para vagas em abrigos à essas mulheres, tiveram os pagamentos suspensos.
Em Porto Alegre, tanto a Casa Mirabal, que acolhe mulheres vítimas de violência doméstica, quanto a Viva Maria, estariam sufocadas por ações da administração municipal; no Estado funcionam em torno de 30 Centros de Referência, “numa demonstração da fragilidade dos espaços públicos para acolhimento das mulheres”, resumiu Cavedon.
De Brasília, diretamente da Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados, a deputada federal Maria do Rosário (PT/RS), acompanhada do presidente do colegiado, deputado Pedro Uczai (PT/SC), coordenou a conexão da audiência pública da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia gaúcha com outros espaços legislativos em diversos estados, como Pernambuco, Minas Gerais e Santa Catarina.
Nos encaminhamentos, a principal ação é no sentido de retomar o funcionamento do Centro Estadual de Referência da Mulher, assim como a orientação para que o Ministério Público encaminhe aos municípios a recomendação de instalação dos Centros de Referência da Mulher e também as Procuradorias da Mulher nas câmaras municipais. A Procuradoria da Mulher da ALRS também vai liderar diversas ações voltadas para as urgências decorrentes do desmonte das políticas públicas para as mulheres, como a reativação do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher.
Rede de proteção desativada
Pelo Levante Feminista Contra o Feminicídio no RS, a jornalista e mestre em Ciência Política Télia Negrão, integrante da Rede de Saúde das Mulheres Latinoamericanas e do Caribe (RSMLAC), apresentou os números da tragédia que vitima em torno de 1.350 mulheres anualmente no país, deixando 2.300 crianças órfãs e as famílias com a sensação de injustiça, uma vez que um terço dos feminicidas pratica o suicídio.
Entre 2012 e 2021, foram registrados no RS cerca de 639.914 mil boletins de ocorrência nas Delegacias Especializadas da Mulher, denúncia que o Levante Feminista encaminhou ano passado ao então presidente da ALRS, deputado Gabriel Souza (MDB), “sem qualquer repercussão”, reclamou Télia Negrão.
A partir da formação da Lupa Feminista Contra o Feminicídio, um observatório criado pelo Levante Feminista, foi possível apurar em detalhes os crimes de gênero, que é a morte de mulheres pelo fato de que são mulheres, prática comum no Brasil pela sua formação patriarcal e machista. “Não existe crime passional, o feminicídio é um crime de ódio, de menosprezo à condição de gênero das mulheres e das pessoas trans”, afirmou a ativista, incluindo também nessa condição o racismo, capacitismo, homofobia, lesbofobia, transfobia e outras formas de depreciação das mulheres e das pessoas.
O documento também refere o abandono de três décadas de políticas públicas construídas pelo movimento de mulheres, materializado no descumprimento do orçamento da União, que destinou apenas 40% ao enfrentamento da violência contra as mulheres no período da pandemia. “Essas políticas foram substituídas por políticas ultraconservadoras de desvalorização das mulheres e disseminação de armas e comportamento machista”, observou Télia, referindo o caso da juíza assassinada pelo marido com arma de fogo no Rio de Janeiro, em 2020.
Invisibilidade às mortes de mulheres trans e com deficiência
A psicóloga e mestre em Psicologia Social e Institucional, Thaís Pereira Siqueira, coordenadora da Lupa Feminista contra o Feminicídio e integrante do Coletivo Feminino Plural, cobrou a reativação da rede de proteção articulada para prevenir o feminicídio, uma vez que a violência é multidimensional e afeta as mulheres, as famílias e as comunidades. Os dados não diferem das amostragens divulgadas periodicamente pelas autoridades da segurança pública, mas Thaís Siqueira observou que a intenção é cobrar a responsabilidade pela implementação de políticas públicas para enfrentar a violência e prevenir o feminicídio.
Um dos aspectos diferenciados do Relatório diz respeito às omissões das mortes de mulheres trans. Em 2020, o governo gaúcho divulgou 80 casos de feminicídio, mas o Levante apurou que foram 85, uma vez que cinco mulheres trans foram vítimas de feminicídio nesse mesmo período. O movimento cobra do governo a notificação oficial das mortes de mulheres trans.
Também em 2021 o Levante encontrou quatro casos de crimes contra mulheres trans, mas o governo notificou apenas dois desses casos entre as 95 vítimas de feminicídio. Thaís acredita que esse número pode ser ainda maior, pois “as mulheres trans que expressam o gênero feminino estatisticamente são as mais assassinadas”. Este ano, até março 27 mulheres foram assassinadas, e a Lupa Feminista encontrou oito casos em abril e outro registrado no dia 1º de maio, totalizando 36 mortes até agora, mas a psicóloga acredita que os dados oficiais poderão surpreender com números ainda maiores.
Outro detalhe está relacionado aos casos (14,7%) que não foram tipificados como feminicídio pelo Anuário de Segurança Pública, o que pode resultar num número maior de casos. Também o perfil dos dados com enfoques de identidade de gênero, orientação sexual, etnia e deficiência levaram o grupo feminista a montar a Lupa utilizando outras fontes. Um dos casos expostos está relacionado às mulheres vítimas portadoras de deficiência, que a Lei Maria da Penha obriga esse registro mas no RS não foi implementado.
O Levante Feminista encaminhou à CCDH dez medidas que o grupo entendem devem ser implementadas para uma efetiva política de enfrentamento à violência contra as mulheres e contra o feminicídio no RS.